quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A Primeira Rupia

Boa tarde pessoal, como falei antes, neste livro que estou lendo, há contos curtos e outros longos. Hoje o conto é longo, bem longo, mas tem uma lição muito importante, vale a pena lê-lo. Ele é originário do Paquistão e seu nome é:




A Primeira Rupia

O homem virtuoso é feliz neste
mundo e é feliz no próximo: é
feliz em ambos. É feliz quando
pensa no bem que fez; sente-se
ainda mais feliz quando envereda
pela estrada do Bem.
(Aforismo budista do "Dhammapada"
ou "Palavra da Doutrina".)


Se queres, meu bom amigo, viajar pelas terras longínquas e misteriosas do Oriente, nada mais simples. Vem comigo. Já escolhi, com cuidado, inspirado na alta sabedoria, o roteiro que mais nos convém. Tudo muito simples e seguro. Escuta. Entraremos pelo Delta do Sindh, (1) cortando as ondas intranquilas de mar de Omã. No fim de quatro dias de fatigante e agitada jornada, vamos encontrar, para além da turbulenta Haiderabad (2) uma cidadezinha pitoresca, risonha, rodeada de espessas e tenebrosas florestas, onde os tigres costumam bramir suas mágoas nas noites calmas de verão.
Essa cidadezinha pitoresca chama-se Sevã. Por favor, nunca venha a esquecer desse nome tão pequenino: Sevã (3). Eis a minha grande idéia: Pararemos exatamente à sombra dos muros da maravilhosa Sevã.
Que vamos admirar em Sevã? perguntarás, certamente. Templos estranhos? Palácios suntuosos com colunas douradas? Ruínas multisseculares enliçadas de legendas seculares?
Nada disso, ó irmão dos árabes (4)! Nada disso! Nem templos gigantescos, nem palácios deslumbrantes, nem ruínas dignas da atenção dos arqueólogos. Entre as ruas estreitas de Sevã, para além do mercado de Tendas Roxas, esbarramos com uma casa escura, meio escalavrada, de teto baixo, sem pintura, bem modesta (uma porta e duas janelas). Ali reside um sábio religioso chamado Raja Ramohã. É homem simples, acolhedor e de boa paz. Dele vamos ouvir uma das histórias mais surpreendentes do Paquistão.
- Uma história? Uma história do Paquistão?
- Sim, meu amigo, uma história.
Não te surpreendas com esta revelação. Observa só. Subimos o Sindh, o rio das águas sagradas; enfrentamos mil e um perigos; fugimos das trações diabólicas de Haiderabad, e assim procedemos com esse fim único e tão prosaico: ouvir uma história! Uma história do Paquistão! Para muita gente sem crença e sem amor à fantasia, tal idéia seria apontada como uma extravagância ou uma loucura. Todos se enganam.Ouvirás com a máxima atenção essa história espantosa e emocionante que será narrada pelo judicioso e eloqüente Raja Yadava Ramohã; e mais tarde, dentro de quinze ou vinte anos, dirás aos teus filhos e aos filhos dos teus filhos se foi útil ou não a nossa estada junto daquelas espessas e tenebrosas florestas "onde os tigres vêm bramir as suas mágoas nas noites calmas de verão".
- E a história?
- Ah! Sim, a história... Já ia me esquecendo da história. Intitula-se: A primeira rupia (5). O douto Raja Yadava Ramohã vai inciar a narrativa. Estejamos atentos. E bem atentos. Encontramo-nos na Ásia, é verdade, nas terras férteis do Paquistão; mas aqui, como em qualquer outro recanto do mundo, sentimo-nos sempre sob o olhar de Deus.
- E a história?
- Vamos ouvi-la, meu bom e prestimoso amigo. Vamos ouvi-la dentro de poucos instantes. Dois predicados exige Deus do homem puro e religioso: Paciência e Resignação!

Longa é a noite para aquele que
está na vigília, na angústia; penosa
é a estrada para o atormentado,
sem esperança; triste é a vida para
o néscio que vive fora da Lei.
(Dhammapada, cap. V)

Sentado num banco tosco, a cabeça baixa, os braços cruzados, o sábio Raja Yadava Ramohã assim começou, numa cadência triste, de remador fatigado:
- Aqui, nesta tranquila Sevã (já lá se vão muitos anos), vivia um velho e honrado mercador, de boa casta, mais conhecido pelo nobilitante apelido de Krivá, isto é, "o homem de uma só palavra".
Samuya, o Krivá, era viúvo e tinha um filho. Esse jovem (figura central desta narrativa) tinha o nome de Chana (6), ou melhor, Chana Samuya.
Imenso, chocante e imenso, era o contraste que se podia observar entre o pai e o filho. O velho Samuya, homem honrado e trabalhador, era pessoa de alto prestígio em Sevã. Todos o respeitavam por sua honradez, sua lealdade inquebrantável e, principalmente, por sua permanente preocupação ilibada de praticar o bem, dentro da vida religiosa. Possuía, enfim, as cinco virtudes (7)!
Mas o jovem Chana, por muitas razões, afastava-se inteiramente do modelos paterno. É bastante triste dizer! Chana Samuya era leviano, vadio e de péssimo comportamento.
Em sua alma enegrecida não cintilava a menor réstia do luar da virtude. Rara era a semana em que ele não agitava Sevã, praticando uma desordem ou uma estripulia qualquer. E com isso, quanto desgosto causava ao coração do bondoso Krivá!
Os chefes de família detestavam o estouvado Chana; as pessoas de bem e de boa casta o evitavam. "Esse jovem, filho do Krivá", diziam os mas sensatos de Savã, "acabará mal. Muito mal, Na prisão, ou na forca. Vejam: já tem dezoito anos e ainda não tomou jeito para as coisas sérias. É preguiçoso, ignorante e desordeiro!"
Sim, tudo era verdade. O moço, leviano e estouvado, arrastava consigo os grilhões de três gravíssimos defeitos: vadio, ignorante e perigoso arruaceiro!
Ora, um dia, ao cair da tarde, um servo foi em busca do desprestimoso Chana, com a missão de tirá-lo, por alguns momentos, da roda alegre em que ele se achava. Seu pai queria falar-lhe. E tratar de assunto de alta e extrema gravidade.
- Vai ver depressa o que o rico Samuya pretende - chalaceou um dos comparsas. - Vê se arrancas, daquele ingênuo velhinho, mil rupias. Os teus amigos estão bem precisados! Que venham os Taktis (8) de ouro!
Surpreendeu-se o jovem com o chamado paterno. Que seria? Largou a guitarra, ajeitou os trajes e foi ter a sua residência. Passou pelo largo portão de ferro, atravessou o pátio e dirigiu-se ao aposento em que se achava seu pai.
O céu acinzentado do Paquistão assinalava a primeira semana de inverno, e a tarde, sob a serenidade do crepúsculo, estava fria, excessivamente fria (9).

O bom é como um jardim florido,
cheio de encanto; o mau é como a
flecha envenenada que sibila no
meio das trevas.
(Dhammapada, cap. VIII)

Deitado no leito, com a cabeça apoiada em largas almofadas de pena, o velho Samuya, o Krivá, meditava. Tudo ali parecia irradiar a tranquilidade acolhedora das coisas que vivem à luz da Bondade. À direita, no fundo do aposento, a lareira estava acesa. O braseiro crepitava. As chamas desenhavam, no ar, retorcidos maches (10) de cor rubra, rápidos, saltitantes, como se o fogo quisesse aquecer o mundo com um imenso cardume esbraseante.
Depois de acolher o jovem com um sorriso triste, o ancião assim começou:
- Meu filho! Quero falar-lhe, pela última vez, das coisas sérias da vida. Atingimos momento de extrema gravidade em nosso rumo pela Terra. Quero informar-te, com paternal sinceridade, da situação. Sinto-me doente, com a saúde profundamente abalada. Não sei se viverei mais de dez ou doze semana neste mundo. A mensagem que eu trazia para a vida já foi entregue ao Destino (11). Tudo fiz, meu filho, a fim de levar-te para o caminho do bem, do trabalho e da virtude; foste sempre surdo aos meus conselhos e admoestações; cego foste também para os nobres exemplos que de mim e de meus amigos recebias a cada passo da vida. Jamais quiseste estudar; detestas o trabalho.Fugia dos bons e procuravas a companhia dos maus, dos cínicos e dos inúteis. Esses péssimos e incorrigíveis companheiros (amigos que em má hora escolheste) perverteram o teu caráter, enegreceram a tua alma. Que és hoje, afinal? Um vadio, um inútil, um tipo detestado e desprezível. E agora sinto que vou deixar neste mundo, para desdouro do meu nome, para desonra de meus antepassados, um filho que todos apontam como uma nódoa da sociedade.
Neste ponto, o enfermo fez uma pausa, olhou para as chamas vivas da lareira e logo prosseguiu com serena melancolia.
- Bem sabes, meu filho, que sou dono de imensas riquezas, e esse patrimônio representa cinquenta e muitos anos de honrado trabalho e cansaço. Tenho vários prédios em Karachi (12); imensos campos de cultura na província de Khaipur (13); três boas lojas de comércio em Haiderabad; vinte e um barcos da minha empresa percorrem o Sindh, no serviço de transportes de arroz; são minhas todas as terras ricas e férteis que rodeiam Munchur (14); conto, ainda, com um estabelecimento bancário, muito próspero, em Cingapura. Pela tua situação de filho único, és o herdeiro de todos os meus bens, de todas as minhas propriedades. Que aconteceria, porém, se toda essa riqueza (terras, casas, navios...) caíssem em tuas mãos? Seria dilapidada em festas e orgias degradantes. E no entanto, com o patrimônio que possuo, poderias viver tranquila e folgadamente até o último dia da tua vida.
Nova pausa. O Krivá, olhou para o filho, que o ouvia de pé, em silêncio. Correu, a seguir, os olhos pela lareira, cujas chamas crepitavam. Depois de passar a mão pela testa, o ancião retomou a palavra:
- Convencido estou de que seria uma injustiça e também um mal irreparável colocar a menor parcela de riqueza em tuas mãos denegridas pelo vício. Deliberei, por isso, deserdar-te.
E assim, logo que eu fechar os olhos para a vida, ficarás na miséria. Sem meia ana (15) para o pão. Sem meia ana para a roupa ou para o teto. Terás que trabalhar como uma sura (16) ou mendigar farrapos pelas aldeias. Escavar pedras nas minas, entre os forçados, ou vegetar nos pátios dos templos. Vida de sofrimento; vida de expiação. Quero, entretanto, oferecer-te uma última oportunidade. Oportunidade única, ditada pelo meu coração de pai: Dentro de três dias, a partir de amanhã, dentro de três dias, repito, terás de ganhar uma rupia com o teu trabalho. Presta bem atenção: Ganhar uma rupia com o teu trabalho. Se fizeres isso, dentro do prazo, serás por mim declarado e nomeado herdeiro de todos os meus bens e ficarás rico, prodigiosamente rico. Poderás viver, regaladamente, até a extrema velhice. Caso contrário, serás deserdado e atirado, como já disse, sem remissão, na lama de indigência. Espero que não percas essa oportunidade. Vai!

Não sigas a lei do mal; não vivas na
ociosidade. A felicidade do homem
está na Verdade e não na Mentira.
(Dhammapada, cap. XIII)

Aquela decisão do pai impressionou profundamente o jovem Chana. A possibilidade de ser deserdado e atirado à miséria tinha que ser admitida dentro da pura realidade.
"A situação é realmente grave", pensou. "Meu pai é pelo povo apelidado o Krivá - o homem de ma só palavra. O que ele diz, faz!"
E concluiu, pensativo: "Vou tratar de ganhar uma rupia com meu trabalho."
Voltou o jovem para a companhia dos seus indignos amigos. Um deles o interpelou:
- Que pretendia de ti o velho Samuya?
Para que ocultar a verdade? Contou Chana a resolução ameaçadora de seu pai, mencionando a condição que ele deveria levar a termo, dentro de três dias, para fugir à pobreza, à miséria: ganhar uma rupia com seu trabalho!
- Uma rupia! chasqueou Soalf (17), um dos vadios presentes. - Ora que idéia mais tola! Tu, meu caro Chana, poderás resolver facilmente o problema e atender ao capricho infantil de teu pai. Tenho uma saída muito fácil para teu caso!
- Qual é, Soalf, a tua sugestão? - perguntou Chana
- Muito simples - explicou Soalf, aqui tens uma rupia. Empresto-ta. Quando receberes a herança pagar-me-ás dez! E amanhã, ao cair da tarde, irás ao aposento de teu pai, e a ele, ao crédulo Samuya, entregarás esta rupia, dizendo, muito sério: "Aqui está, meu pai, a rupia que ganhei com o meu trabalho!" O velho não terás motivo para duvidar da tua palavra e terás ganho o desafio! A herança dos Samuyas será tua. Que achas?
Concordou Chana com a sugestão do amigo Soalf e aceitou a rupia emprestada. Mais tarde pagaria dez.

O néscio que despreza a Lei e
segue uma doutrina falsa prepara
sua própria destruição.
(Dhammapada, XII)

No dia seguinte, ao cair da tarde, entrou Chana no aposento de seu pai.
- Sua benção, meu pai! - proferiu com voz pausada.
- Que Deus te abençoe, meu filho - respondeu o velho.
- Aqui está, meu pai, a rupia que ganhei, hoje, com o meu trabalho!
E Chana, com o maior descaramento, entregou ao ancião a rupia que,na véspera, havia recebido do indigno Soalf.
O ancião tomou nas mãos a moeda que recebera do jovem e pôs-se em silêncio, a virá-la e revirá-la entre os dedos. Olhava para uma face e depois punha-se, muito atento, a olhar para o anverso. Balanceava, de leve, a mão, como se quisesse sentir o peso da moeda.
A tarde estava fria, muito fria. No fundo da sala a lareira estava acesa; o fogo crepitava. As chamas erguiam bem alto os seus volteios avermelhados.
O judicioso Krivá olhou para o filho, para a moeda e, depois, para o fogo. O rapaz esperava de pé, imóvel, aguardando a decisão paterna. O fogo dava estalidos e atirava para o ar fagulhas que rebrilhavam.
- Meu filho - exclamou de súbito o velho, como se tivesse recebido uma inspiração do céu. - Meu filho! Esta rupia não foi ganha com o seu trabalho!
E, tendo proferido tais palavras, ergueu a mão e, num gesto rápido, seguro, atirou a moeda ao fogo.
Esmagado pela verdade, Chana não reclamou, não protestou. Abaixou a cabeça e retirou-se humilhado.

A vida é fácil de viver para um
homem que não tem vergonha.
(Dhammapada, cap. XVIII)

À noite retornou o desajuizado Chana à companhia dos seus péssimos amigos.
- Então, indagou Soalf, em tom faceto - conseguiste enganar o teu pai? Venceste a tal aposta logo no primeiro dia?
Relatou Chana o fracasso e a vergonha que sentiu ao ouvir a verdade cortante: "Este rupia não foi ganha com o teu trabalho." E lá fora, para o fogo, a rupia de Soalf. O plano fracassara.
- Isso tinha que acontecer - remoqueou logo Onicic (18) outro vadio e desbriado do grupo. - Era fatal! Eu já previra.
E como Chana o fitasse muito surpreendido, o desonesto Onicic ajuntou, a cara ulcerada de vícios, trejeitando um sorriso sarcástico:
- Vais à presença de teu pai, depois de um dia de trabalho, repara bem! Um dia de trabalho, fresquinho e leve como uma criança que sai do berço. É claro que teu pai havia logo de perceber a mentira. E o velho fez mal em jogar a rupia ao fogo. Devia atirar a rupia em tua cara, para ensinar-te a ser inteligente e prático.
E, tirando da bolsa uma rupia, entregou-a a Chana, dizendo em tom cínico, com um petulante ar de inteligência:
- Aqui está o meu empréstimo. E a tua vitória, na competição imposta por teu pai, será certa, certíssima. Mas não procederás estouvadamente como fizeste hoje. O meu plano é outro e não poderá falhar. Ouve bem. Amanhã, ao cair da tarde, quando bem próxima for a hora de terminar o dia, darás duas ou três corridas pelas margens do Sindh até o bazar dos pescadores, duas ou três vezes rolarás no chão, sobre a lama, junto à ponte; quando estiveres assim, bem sujo de terra, fatigado entrarás no aposento de teu pai. E dirás, como um homem exausto, que trabalhou, sem parar, o dia inteiro, que trabalhou de verdade: "Aqui está, meu pai, a rupia que ganhei com o meu trabalho!" Ao notar a terra em tua roupa, até rasgões em tua blusa, e ao perceber o cansaço em tua voz, teu pai aceitará a rupia, aquela rupia ganha com o teu trabalho. Mas não te esqueças: Logo que receberes a belíssima herança terás de me pagar cem! Dez pelo empréstimo tão oportuno; noventa pelo sábio e acertadíssimo conselho que acabo de te dar.
Aceitou Chana a rupia de Onicic e achou que aquela idéia, um tanto extravagante, de simular trabalho, dando corridas pelo cais e trambolhões pelas ruas, era acertada. Uma cartada infalível!

Aquele que diz  que não é
verdade vai para o Inferno;
também aquele que não tendo
feito uma coisa afirma tê-la feito.
(Dhammapada, cap. XVII)

No dia seguinte, o segundo do prazo, ao cair da tarde, depois de ter passado o dia na indolência e na vadiagem, o jovem Chana achou que era chegada a hora de correr pela rua das Tendas Roxas. A simulação devia ser perfeita. Os pescadores, que retornavam do trabalho com suas redes e estacionavam pela rua, olhavam espantados para aquele rapaz (o filho do Krivá), que parecia alucinado. Havia adoecido, com certeza. Duas ou três vezes atirou-se ao chão e rolou pela terra, sujando-se, como um chacal, na lama negra.
Terminada a vergonhosa mistificação, dirigiu-se o jovem para o aposento de seu pai. A tarde desenha no céu do Paquistão uma tela de indescritível beleza. Um frio cortante, afiado nas ondas do mar de Omã, varria as ruas e infiltrava-se pelas frestas.
O ancião, como sempre, achava-se recostado em seu leito. Ao fundo do grande aposento, a lareira estava acesa; o fogo vivo desenhava arabescos estranhos.
Chana entrou, As vestes sujas e em desalinho; lama nas mãos e terra no rosto. E disse, a voz perturbada pela respiração, opressa e ofegante:
- Sua bênção, meu pai!
- Que o Eterno te abençoe, meu filho!
- Aqui está, meu pai... - declarou Chana, entregando a moeda na ponta dos dedos - aqui... está... - o seu peito arfava de cansaço - aqui está a rupia... a ru... pia que eu gan... gan... ganhei - a fadiga o forçava a gaguejar - com... com o meu trabalho...
O velho Samuya, exatamente como fizera na véspera, recebeu a moeda do filho e pôs-se a examiná-la calma e tranquilamente. Observou atento uma das faces; virou-a entre os dedos e procurou apreciá-la pelo outro lado. Sopesava a moeda, balançando levemente a mão para cima e para baixo.
A tarde estava fria, como sabem ser frias as tardes de Sevã. No fundo da sala (já disse e repito ainda) a lareira estava acesa e o fogo era intenso; as chamas punham reflexos vermelhos pelas paredes e pelo chão. O rapaz, de olhos baixos, a roupa suja, a respiração cansada e sibilante, aguardava, em silêncio, a sentença do paterna.
O Krivá olhou para o filho, para a moeda e para o fogo. Teria percebido a mistificação torpe que aquela rupia representava?
- Meu filho! - exclamou serenamente o ancião, numa decisão inabalável, severa e rude - Meu filho! Esta rupia não foi ganha com o teu trabalho!
E depois de ter proferido tais palavras (como fizera na véspera), num gesto rápido e seguro, atirou a moeda para o meio das chamas.
Era aquela decisão do Krivá. Chana não protestou, não reclamou. Abaixou a cabeça e retirou-se humilhado. Com a mistificação ignóbil, ditada pelo seu indigno companheiro, não conseguira ludibriar seu pai. A segunda rupia da mentira, seguindo o mesmo caminho da primeira, fora para o fogo, levando o peso da sua infâmia.
Que fazer? Já lá se fora o segundo dia do prazo. Restava um dia, um dia apenas. E o velho Samuya era o Krivá, "o homem de uma só palavra". O jovem, ao regressar, sentiu os passos frios da miséria a pisar-lhe na sombra.

Agradável é a virtude que vai até
a velhice; agradável é a fé que tem
raízes profundas.
(Dhammapada, cap. XXIII)

A rua estava escura. Desolado pelo fracasso do segundo dia, perdida a segunda rupia, profundamente triste e aterrado, dirigia-se o jovem Samuya à Praça dos Tintureiros (ponto preferido para a reunião dos vadios e desocupados), quando ouviu que alguém  chamava pelo nome:
- Chana! Olá, Chana! Aonde vais?
Chana parou. Um vulto destacou-se da sombra e dele se acercou. O jovem logo o reconheceu. Era o prudente Gaimo (19), velho amigo de seu pai. Fora seu professor das primeiras letras alguns anos antes e Chana tinha certo respeito e amizade pelo antigo Mestre. Entre as pessoas honradas de Sevã, o velho Gaimo, homem de reto caráter, era o único a cumprimentá-lo com simpatia e a sorrir para ele com bondade.
- Vou até a praça - respondeu, cabisbaixo, pesaroso - Pretendo conversar com meus amigos. Quero distrair-me um pouco. Sinto-me aflito, preocupado.
- Aflito? Preocupado? - indagou o velho Gaimo - Que aconteceu contigo?
Resolveu Chana contar ao seu ex-professor tudo o que ocorrera (já no coração lhe doíam remorsos).
Narrou a grave exigência de seu pai e, a seguir, as duas tentativas fracassadas. A primeira, sugerida por Soalf, e a segunda, a burla miserável, inspirada por Onicic,
E concluiu, infletindo a cabeça para o peito e deixando caírem os braços, num desalento:
- Nada mais me resta. Estou perdido. Sinto-me desde já condenado à miséria!
- E quem te disse isso? protestou o judicioso Gaimo, pousando a mão no ombro de seu discípulo. - Não considero o teu caso perdido. Ao contrário. Julgo-te salvo. Asseguro que estás a salvo. Cometeste, a meu ver, dois erros graves, imperdoáveis. Mentiste para o teu pai. E mentiste duas vezes. Mentir para o pai é uma infâmia , uma torpeza. Para o pai não se mente. Não se mente de forma alguma. Foste, é claro, mal aconselhado. Pérfidos amigos levaram-te a praticar a baixeza de mentir, quando devias, diante de teu pai, falar a verdade. Escuta, meu caro Chana, de acordo com o prazo fixado por teu pai, o Krivá, resta ainda um dia. Larga os teus indignos amigos e pensa na tua vida, em teu futuro e em teu pai. Trabalharás amanhã, trabalharás como um homem de bem; ganharás a tua rupia e serás digno do teu nome. Ficarás, assim, reabilitado para a vida. Volta, meu amigo; volta para a tua casa. Precisas repousar bem esta noite, para que amanhã, cheio de ânimo, possas ganhar tua rupia. Será, afirmo pelo nome do Eterno, a primeira rupia ganha honestamente com o teu trabalho!
E, depois de abraçar, carinhoso, o seu antigo discípulo, afastou-se, desaparecendo na escuridão da rua.

A dádiva da Lei excede todas as
dádivas; a doçura da Lei excede
todas as doçuras; o prazer da Lei
excede todos os prazeres.
(Dhammapada, cap. XI)

No dia seguinte, ao romper da manhã, Chana ergueu-se do leito, vestiu-se rapidamente e  saiu.
Precisava começar bem cedo.
"Antes do meio-dia", pensou, "já terei ganho uma rupia com meu trabalho".
Pretendia Chana afastar-se da cidade. "Não quero encontrar conhecidos", refletiu. "Vou para campos de Kotri".
Ao caminhar pela estrada avistou vários homens que se preparavam para o serviço da colheita de juta. Alguns decruavam a terra;lidavam outros no replantio. Chana apresentou-se ao chefe, ofereceu-se para o serviço e foi aceito. Viu-se forçado a entrar num terreno pantanoso; em alguns lugares a água chegava-lhe até a cintura. Trabalhou ativamente durante mais de duas horas, A seu lado, alguns homens, delindo suas angústias, trabalhavam cantando; mantinham-se outros em silêncio, soturnos e tristes.
Em dado momento, o capataz, de semblante carregado, acercou-se dele e perguntou:
- Olha rapaz, o apanhador que estavas substituindo acaba de chegar.Não precisamos mais dos teus serviços.
E atirou-lhe, em tom seco, despedida irrevogável:
- Tens pouca prática e necessitamos de homens bem ativos, experimentados.
E deu-lhe, como pagamento, quatro anas.
Recebeu-as Chana na palma da mão. Olhou as quatro moedinhas e refletiu pesaroso, desolado:
Que poderei fazer com essas quatro anas? Preciso é de uma rupia!
Estava nosso herói meditando sobre o caso, decidido a arranjar novo trabalho, quando avistou um oleiro gordo, de cara risonha, que girava uma roda para amassar barro. Chana ofereceu-se na mesma hora para o trabalho, e o oleiro aceitou.
- Vira a roda, meu amigo! - disse, alegre, o oleiro - Preciso preparar, dentro de três dias, dois milheiros de tijolos!
Trabalhou Chana algum tempo, mas antes da hora da meia sombra (20) o oleiro de cara redonda resolveu parar a tal roda e pagou, pelo serviço feito, quatro anas.
"Quatro mais quatro, oito! Oito anas!", pensou Chana. "Já ganhei oto anas! Meia rupia! Preciso, porém, ganhar uma rupia inteira. Uma rupia com o meu trabalho!"

Segue a lei da virtude; não sigas
a do pecado. Os Virtuosos
descansam na bem-aventurança
neste mundo e no outro.
(Dhammapada, cap. XIII)

Deixando o serviço do oleiro, resolveu Chana caminhar pela estrada em busca de novas tarefas; em dado momento, avistou um homem de tez ruiva, mal-ajambrado, que vinha ao seu encontro, trazendo no ombro um molho de ervas.
O homem da tez ruiva o reconheceu:
- Não és, por acaso, Chana, o filho do velho e honrado Krivá?
- Sim - confessou o jovem. - Sou o filho do honrado Krivá.
- Queres ficar com estas ervas aromáticas? São de Pundjab. No mercado podem dar bom preço. Vendo-as todas por meia rupia. Serve-te o negócio? Preciso voltar para casa, pois tenho um filho doente e minha esposa foi ontem a Karachi visitar os parentes.
- Aceito - respondeu Chana. - Compro-te as ervas por meia rupia.
E entregou ao homem as oito anas que havia recebido do oleiro e do plantador de juta.
De posse das ervas dirigiu-se Chana para o mercado. Colocou-se junto à entrada principal e, com a maior naturalidade, começou a apregoar sua mercadoria preciosa:
- Quem compra ervas aromáticas? Coisa finíssima! Sem igual nesta terra! Quem compra ervas aromáticas?
Os homens que passavam mostravam-se às vezes interessados. Olhavam, sorriam para Chana e seguiam para diante. Mas, afinal, quem pretenderia comprar ervas aromáticas quando, em casa, faltava o azeite para o lume, ou o pão para a arca?
Mas Chana, decidido a vender, a ganhar a sua rupia, não esmorecia, não desanimava:
- Quem compra as deliciosas ervas aromáticas? Ervas aromáticas de Pundjab! Quem compra? Quem compra?
Ao longo da estrada, batida pelo vento, a soalheira abrasava. (21)
Pequeninas borboletas de asas amarelas voavam sem destino.
Um homem alto, com turbante de seda, ao dar com olhos no jovem, parou e insinuou em voz baixa para um amigo que estava a seu lado:
- Ou muito me engano, ou este rapaz das ervas aromáticas é o filho do rico Samuya, o Krivá. Surpreende-me vê-lo aqui, trabalhando no comércio, entre os mercadores da feira. Sempre me pareceu um vadio, um inútil. O velho e bondoso Samuya deve se sentir feliz ao saber que o filho mudou de vida.
Chana continuava incansável, a proclamar as virtudes incomparáveis de suas ervas:
- Quem deseja ervas finas e aromáticas? São de essência duradoura! Alta preciosidade para o lar! Quem compra ervas aromáticas?
Passou, afinal, uma mulher de rosto velado, ricamente trajada, seguida de duas escravas indianas. Trazia na testa um belo diadema de Bahawalpur (22). O seu vistoso manto de seda, caindo em pregas largas, chegava até o chão. Ao caminhar, o frêmito de suas saias chamava a atenção. Era uma opulenta muçulmana, que deixava, todas as manhãs, o harém de seu esposo e corria ao mercado, em busca de rendas, perfumes e colares finos.
Ao ver o jovem Chana, com seu molho de ervas, a muçulmana do diadema parou e perguntou-lhe com ar meio provocante:
- Quanto queres, ó jovem saide (23) pelas ervas?
Com sorriso amável, respondeu Chana:
_ Senhora, em outra situação, eu lhe daria todo o molho em troca de simpatia e nada mais! Hoje, entretanto, sou forçado a vender. Preciso de uma rupia e nada mais!
- Uma rupia! - protestou com a sobranceria impertinente a desconhecida - Por Allah! Uma rupia por um molho de ervas? Isso é um delírio, meu jovem! Nem que fosse incenso fino de Hojai (24). Ali, no outro extremo da feira, os homens de Batakundi oferecem ervas de cheiro a três anas cada molho.
E cortava as palavras com frouxos de riso. O sarcasmo brilhava em seu olhos.
- Mas, senhora... - balbuciou Chana - ... preciso de uma rupia.
- Ora, ora... resmungou a muçulmana, olhando-o de alto - Que importa a mim se precisas de uma, cinco ou vinte rupias? As ervas de cheiro aparecem, agora, entre os traficantes do Sul, por preço muito baixo. És, pelo que vejo, meu caro saide, novo aqui. Não conheces bem o comércio e nem sabes as coisas como andam. As rupias são raras e difíceis. Desejo ajudar-te. Pago-te doze anas pelo teu molho seco e mesquinho. Aceitas minha proposta?
Chana refletiu apreensivo. Se as ervas (que ele havia comprado, na estrada, por meia rupia) nada valiam, o mais certo seria vendê-las pela primeira oferta, aquele "molho seco e mesquinho". E sem mais hesitar, aceitou as doze anas da exuberante muçulmana do rosto velado e entregou-lhe todo o apanhado de ervas.
A dama espalhafatosa do diadema de ouro afastou-se, levando as ervas aromáticas. Um hindu magro, de rosto pálido, de estatura acima da mediana, que tudo ouvira em discreta observação, puxou o jovem Chana pelo braço e disse-lhe com um risinho importante:
- Fizeste mal negócio, meu amigo. Péssimo negócio. Essa islamita gorda, com diadema na testa, enganou-te. Viu em ti um novato e resolveu explorar-te. Não quis intervir na venda para não parecer importuno. As tuas ervas do Pundjab podiam ser vendidas, ainda hoje mesmo, por duas ou três rupias. Não aqui, mas no suque dos perfumistas, onde os árabes dão bom preço pelas raízes e plantas aromáticas. Sei que és novo no ofício; toma, pois, cuidado. E muito cuidado. Quem deseja trabalhar no comércio, precisa estudar, detidamente, os preços das mercadorias; pesar, com atenção, os desejos e caprichos dos compradores; consultar o interesse predominante do momento; informar-se da produção e das mil outra coisas que fazem variar as cotações, descer ou subir os preços.
Agradeceu Chana os conselhos e advertências do hindu, contou, com cuidado, as doze anas, uma a uma, e preparou-se para deixar o mercado. Precisava ganhar mais quatro anas e completar uma rupia. Uma rupia ganha com  seu trabalho!
- Vou procurar um trabalho fora daqui. O comércio, com suas confusões de preços, com seus múltiplos problemas, não me interessa.

Ensina; ensina sempre, e estarás
aprendendo também.
(Dhammapada, cap. III)

Já bem alto ia o sol quando Chana enveredou pela estrada, tomando o caminho da aldeia de Korti, onde esperava ganhar, com seu trabalho, o que faltava para as dezesseis anas.
Sob uma grande figueira, na curva do caminho, avistou um homem de barba branca, a face lanhada de rugas, que se achava sentado numa pedra, tendo na mão uma folha cheia de caracteres estranhos.
Chana saudou o ancião e perguntou-lhe, num tom receoso, se precisava de alguma coisa.
- Sim - resmungou o velho - estou à espera de alguém que me ensine a ler esta carta escrita por meu filho.
- Não seja esta a dúvida - respondeu Chana - posso muito bem ajudá-lo. Sei ler qualquer escrito. 
E o jovem leu a carta, traçada em caracteres árabes, traduzindo-a, palavra por palavra. Um ou outro termo de urdu (26) exigia esclarecimento. Chana elucidou o velho sobre todos os pontos obscuros. O ancião alegrou-se com as notícias (que eram boas), pois o filho ausente avisava-o de que breve regressaria de Karachi, a nobre Karachi, onde se achava trabalhando com seu tio havia cinco anos. "As suas preocupações vão terminar (dizia a carta), pois dentro de duas semanas estarei ao teu lado".
Pela tarefa de ter lido a carta, Chana recebeu do velho uma ana, três bolos de manteiga e um pedaço de pão de centeio, bolos e pão que ele saboreou com muito apetite, pois já se sentia alquebrado pela fome.

Aquele que antes era leviano e
sem cuidados e que se torna calmo
e judicioso ilumina este mundo tal
como a luz do sol libre das nuvens.
(Dhammapada, cap. XI)

Chana juntou na mão o dinheiro ganho e contou outra vez as moedinhas:
- Treze anas! Pouco falta para uma rupia! Preciso trabalhar ainda!
Nesse momento avistou um burriqueiro, cara de malaio, caminhava lentamente pela estrada puxando o seu burrinho pela rédea. Aferrenhado pela jornada, o burriqueiro gritava e praguejava:
- Vamos! Pelas barbas do Profeta (26)! Não sei o que tem este animal, que não quer andar!
Chana olhou com a maior atenção para o burrinho.
- Espere, amigo! - disse, dirigindo-se ao burriqueiro - Parece-me que o teu burrinho está ferido. Tem algo na pata.
- Na pata? - estranhou o homem, interrompendo a caminhada.
- Sim, na pata. Um espinho, creio...
O jovem abaixou-se, tomou uma das patas do burrinho e, rápido, arrancou o espinho que ali se achava encravado. Lavou, depois, a ferida e amarrou um pedaço de pano. Sem aquele cuidado, o animal estaria inutilizado para o serviço.
Encantado ficou o burriqueiro com o auxilio de Chana e deu-lhe, a título de pagamento pelo tratamento do burrinho, uma insignificante moedinha, uma ana.
O jovem agradeceu ao bom velhinho e contou, ou melhor, recontou, com ansioso interesse, o dinheiro que até então havia ganho com o seu trabalho:
- Quatorze anas!
Faltavam, apenas, duas anas para completar a rupia ganha com o seu trabalho.
Na curva da estrada, já perto da aldeia do Kortis, avistou Chana, junto ao rio, à sombra de velhos tamarindeiros, um grupo numeroso de viajantes. Vinha de longe uma toada de passos e vozes.
Indagou de um árabe que passava, com largo turbante amarelo, todo engrilado.
- São peregrinos muçulmanos - respondeu o informante - Vão assistir, para além do rio, às festas do aniversário do Profeta. Os remadores são poucos e, por isso, a travessia está sendo demorada.
- E o encarregado do transporte precisa de remadores? indagou Chana.
- De certeza que sim - acudiu logo o árabe do turbante amarelo. - Se queres ganhar dinheiro, é só remares.
Chana não perdeu tempo. Correu aflito para junto do embarcadouro. Procurou, sem mais delongas, o encarregado do transporte dos peregrinos e ofereceu-se como remador:
- Aceito - declarou o encarregado - mas, como sabes, meu jovem, por viagem de ida e volta só pago ao remador meia ana! É o preço! Nem mais um grão de trigo.
Meia ana por duas viagens? Chana refletiu. O sol estava a meia altura no céu. Ele (para completar a rupia) deveria fazer quatro viagens completas!
Tenho tempo, pensou, martelado pela preocupação que o dominava. Vou ganhar, no trabalho do remo, as duas anas que me faltam.
Escolheu um dos barcos, tomou um par de remos e pôs-se a transportar os peregrinos muçulmanos.
Rema que rema, braquejou Chana, sem parar, a tarde toda.
No fim de oito travessias, já cansado, com as mãos feridas, recebia Chana, do seu empregador temporário, o pagamento das duas anas prometidas (nem mais um grão de trigo).
Chana, esfalfado, com as mãos trêmulas, contou as moedas recebidas:
- Dezesseis anas! Uma rupia!
Havia ganho, ana por ana, uma rupia com o seu trabalho.
Sentia-se orgulhoso, consigo mesmo. Uma alegria infinita transbordava-lhe o coração, afervorado, naquela hora, pela grande e radical mudança em sua vida.
Pesava-lhe no corpo a extrema fadiga; faminto, sedento, as mãos feridas, as vestes sujas; mas Chana sentia-se intensamente alegre, radiante. O seu desejo era cantar, gritar. Gritar pelos campos, pelas ruas, no meio do rio entre os veleiros, para que todos ouvissem. Ouvissem aquela espantosa verdade:
- Ganhei uma rupia com o meu trabalho! Vejam! Aqui está! Uma rupia ganha com o meu trabalho!

Não tenhas por amigos os que
praticam ações más; não faças
amigos entre as pessoas de
sentimentos baixos. Procura fazer
amigos entre os virtuosos. Que os
teus amigos sejam homens de bem.
(Dhammapada, cap. VI)

E Chana, passos largos, vencendo a estrada, de regresso para sua casa, refletia:
- Trabalhei de verdade, e sem parar, o dia inteiro. Vejamos: Trabalhei na agricultura, colhendo juta nos pântanos; trabalhei no comércio, vendendo (no meio e muita confusão) ervas aromáticas na feira; trabalhei como professor, ensinando o velho analfabeto a ler uma carta; trabalhei como veterinário, curando o pobre burro que seguia ferido pela estrada; trabalhei, finalmente, no serviço de transportes, conduzindo peregrinos muçulmanos para outra margem do rio. Aos principais ramos da atividade humana dei, hoje, o meu quinhão de esforço e de trabalho. Meu pai vai sentir-se orgulhoso de mim! Deixei a vida inútil, deplorável, e ingressei na legião dos homens que trabalham, dos homens que produzem, dos homens dignos, que são úteis à sociedade.
E, recalcando a imensa fadiga, caminhava bastante apressado, pois o sol, reluzindo entre as nuvens cor-de-rosa, tomava sobre o horizonte; e o jovem, ao aproximar-se de Sevã, repetia, com intenso júbilo, seguindo a trilha de seu devaneio:
- Meu pai vai sentir-se orgulhoso de mim!
E apertava, cauteloso, na mão ferida e dolorida, as dezesseis anas escuras, azinhavradas, que tão penosamente havia ganho no trabalho.
Já bem perto de sua casa, ao atravessar a Praça dos Tintureiros, avistou dois de seus antigos companheiros. Eram dois velhacos e trampolineiros do grupo, irmãos de Soalf. Chana não os cumprimentou.
- Não posso ter relações de amizade com gente dessa espécie! - refletiu. - São tipos vadios, mentirosos, inúteis! É raça que não presta! Sou, agora, homem de bem, de caráter, homem do trabalho!

Livra-te do mal; segue o caminho
da virtude; pratica a justiça e
serás glorificado.
(Dhammapada, cap. VIII)

Já ia o disco avermelhado do sol tocando de leve a curva imensa do horizonte e feria a Terra com suas últimas flechas de luz, quando Chana entrou, de passo firme e cabeça erguida, no aposento em que se achava seu pai.
- Sua bênção, meu pai! - disse ao chegar.
- Que o Eterno te abençoe, meu filho - respondeu o ancião.
Depositou Chana as dezesseis anas na mão de seu pai e declarou, com voz pausada e cheia de emoção:
- Aqui está, meu pai, a rupia que ganhei, hoje, com o meu trabalho!
A tarde estava fria. A lareira, como sempre, estava acesa e o fogo crepitava. As chamas voluteavam no ar.
O velho Samuya tomou nas mãos as dezesseis anas e ficou, alguns instantes, em silêncio, observando as pequeninas moedas. Contou-as e recontou-as. Sim, ali estava uma rupia!
O rapaz, os braços cruzados, trêmulo de frio, aguardava a decisão paterna. Estava tão emocionado, tão comovido, que as lágrimas corriam-lhe pelas faces. Chana chorava; mas chorava de alegria, chorava como um homem, pela grande vitória alcançada. Batia-lhe descompassadamente o coração.
O ancião, em silêncio, pôs-se a olhar para o filho; observou-o com meticuloso cuidado, da cabeça aos pés. O jovem tinha as mãos feridas, a roupa suja e em desalinho. Havia até sangue em sua blusa. Parecia pálido e abatido. Observou, de novo as dezesseis anas empilhadas em sua mão; e, finalmente, olhou para a lareira. As chamas crepitavam.
Decorridos alguns instantes, o ancião tomou entre os dedos as moedinhas, ergueu a mão e, num gesto rápido, atirou as dezesseis anas ao fogo, proclamando, na extrema decisão, com voz grave:
- Meu filho, esta rupia não foi ganha com o seu trabalho!
- Meu pai! - bradou o rapaz, num protesto incontido.
- Ah! Meu filho! Então foi. Sim, foi ganha com o teu trabalho. O teu protesto, sincero e expressivo, é a prova veemente! Das outras vezes, quando atirei a moeda ao fogo, nada disseste. Mas desta vez protestaste. E por quê? É que hoje, meu filho, recebeste a grande e sábia lição da vida! O dinheiro ganho com o trabalho não deve ser atirado, como palha sem valor, ao fogo do desperdício.
E depois de breve pausa, o nobre Krivá prosseguiu, com ênfase:
- Só o trabalho honrado nobilita o homem. Pelo trabalho, unicamente pelo trabalho, pode o homem servir; servir à família, servir aos amigos, servir à sociedade. Aquele que não trabalha, não serve. Trabalhar é servir. Servir é trabalhar. Uma vez que és um homem do trabalho, não tenho dúvida em deixar toda a minha fortuna em tuas mãos. A riqueza por mim acumulada, entregue a um homem de bem, de caráter firme, será uma fonte de incalculáveis benefícios para a coletividade e para a Pátria! E rematou, comovido:
- Chana! És o meu filho bem amado! Tenho orgulho de ti! Ganhaste, hoje, para toda vida, a primeira rupia com o teu trabalho!

__________
Nota:
(1) Sindh: Refere-se ao Indo (ou Indu), um dos rios mais notáveis da Ásia Meridional. Está entre os rios sagrados do Oriente. Nasce no planalto tibetano, atravessa os desfiladeiros do Himalaia e fertiliza as planícies de Pundjab. Recebe, pela margem esquerda, o Pandjnab (Cinco Rios) e atira-se, por um delta de várias bocas, no mar de Omã.

(2) Haiderabad: Cidade importante na Índia, capital de um Estado de mesmo nome. Não é banhada pelo Indo, mas pelo Musi, afluente do Indo. O palácio El-Char-Minar significa "Quatro Minaretes". Em Haiderabad, a vida noturna é muito intensa.

(3) Sevã ou Sewã: Cidade do Paquistão Ocidental, à margem direita do Indo. Larga produção de arroz e juta.

(4) Irmão dos árabes: Tratamento carinhoso. Significa: amigo leal, bom companheiro; pessoa que estimamos e cuja companhia nos agrada. Não esquecer que no Paquistão, 80% da população são muçulmanos.

(5) Rupia (leia-se rupía, com acento no i): Moeda do Paquistão. Divide-se em dezesseis anas. Cada ana é dividida em quatro partes chamadas pices.

(6) Chana: Com este nome surge na história do budismo uma figura de alto relevo. O discípulo predileto de Buda chamava-se Chana. E Chana manteve-se fiel ao Mestre até os últimos momentos. Símbolo de fidelidade inquebrantável.

(7) Cinco virtudes: Caráter firme; sabedoria; bondade; amor ao trabalho; espírito de justiça.

(8) Taktis: Peças raras. Discos valiosos.

(9) Apresenta o Paquistão Ocidental três estações bem definidas: o inverno, o verão e a estação das chuvas. Em alguns lugares, o inverno é extremamente rigoroso, porém, em geral, seco.

(10) Maches: variedade de peixe. Tem a forma alongada.

(11) Destino: Na crença hinduísta, cada pessoa tem, na vida, certa missão a cumprir, isto é, traz uma mensagem que deve ser entregue ao Destino.

(12) Karachi: Porto de mar.

(13) Khaipur: Um dos Estados que formam o Paquistão Ocidental.

(14) Munchur: Região dos lagos.

(15) Ana: Correspondente a um dezesseis avos da rupia. Dois pices.

(16) Sudra: Indivíduo de casta inferior.

(17) Soalf: Anagrama da palavra falso.

(18) Onicic: Anagrama de cínico

(19) Gaimo: Anagrama da palavra amigo.

(20) Meia sombra: Onze horas, mais ou menos.

(21) Nessa época, no Paquistão, os dias são quentes e as tardes e as noites muito frias.

(22) Bahawalpur: Província do Paquistão, famosa por suas indústrias de jóias e adereços.

(23) Saide: Chefe. No caso é empregado em sentido irônico, de gracejo. Saide é vocábulo árabe.

(24) Hojai: Variedade rara de incenso, que os árabes muio apreciam.

(25) Urdu: É o idioma nacional do Paquistão.

(26) Expressão muçulmana. Refere-se a Maomé.

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