terça-feira, 23 de agosto de 2016

O Estratagema de Takla

Bom dia pessoal. Hoje vou dividir com vocês uma história que basicamente trata-se da inveja. Muitas pessoas, quando vêem alguém próximo a elas terem a oportunidade real de melhorarem significativamente de vida, tornam-se invejosas e envenenam os corações por conta disso. Façam como Takla, não deixem que isso seja um impeditivo, transformem toda essa energia negativa em positiva e tudo dará certo.



O Estratagema de Takla

Conta primeiro os teus inimigos e

o calcular, depois, as tuas
inquietações.

Al-Harini (1054 - 1122)

Corria o terceiro mês do ano de 698. Na velha cidade de Damasco vivia, nesse tempo, um homem de meia-idade, de ar retraído e modesto, que se chamava Mosab Ali Hosbã. A vida de Mosab, acorrentada à pobreza e vulgaridade, retalhada pelos desenganos, muito longe estava de ser considerada feliz. Quando moço, em Medina (a sua cidade natal), exercera a árdua profissão de falcoeiro e fizera-se muito destro na falcoaria.
Três vezes viajara pelo Iraque, e tem ido, em caravana de peregrinos, até a Pérsia, a convite de um príncipe caçador, aprendera contas, cálculos, geometria e todos os estranhos segredos da Astrologia, com dois sábios sacerdotes de Khorassã.
Em consequência de uma queda desastrada o falcoeiro Mosab ficou capenga. Impossibilitado de continuar em trabalhos de falcoaria, vendeu a sua rica falcoada e mudou-se para Damasco, altamente prestigiada por todo o Oriente por ser a Capital do Califado. Sob o céu damasceno conheceu Mosab a jovem Takla, filha de Mekoul (o escriba), com a qual se casou. A profissão adotada por Mosab, em Damasco, não era das mais rendosas. Impelido por gênio simplório e acanhado, fizera-se taleb, isto é, professor. O seu feitio calmo e paciente tornara-o muito estimado. Ensinava cálculos, música, astrologia e noções de geometria. As lições eram mal pagas, e com o minguado salário que recebia, mal podia Mosab manter Takla, sua esposa, e Laila, sua filha. É bem verdade que Takla, diligente e hábil, colaborava para a economia do lar, bordando pequenos tapetes com legendas do Alcorão (1). Esses tapetes, enriquecidos com figuras geométricas eram vendidos aos ricos damascenos e aos mercadores de Alepo.
Ora aconteceu - Maktub (2)! - que certa manhã ( como de costume) preparava-se o bom taleb para sair (já se achava, aliás, na porta de sua casa) quando dele se acercou um desconhecido de turbante claro e albornoz de seda. Tinha a fisionomia de um adolescente e os seus olhos eram claros. Presa à cintura, uma adaga finíssima, ornada de cornalinas.
Trocadas as saudações habituais, disse o visitante de albornoz de seda, com ar compenetrado:
- Chamo-me Nhamã Yaussef, e sou um dos oficiais do Califa. Venho procurá-lo por ordem expressa do nosso glorioso soberano Abd-el-Melik, Ben-Mowar (3), Emir dos Árabes. O rei deseja receber, em audiência, o taleb Mosab Ali Hosbã. É urgente!
O frio da palidez cobriu o rosto de Mosab. O rei mandava-o chamar? Exprimiria aquele espantoso e inesperado convite uma honra excepcional. Aparecia com o esplendor lendário de um tapete mágico capaz de arrancar o taleb da realidade triste da vida e levá-lo ao país encantado dos sonhos. Mosab tremia, emocionado. Qie poderia faturar de tudo aquilo? Sentiu gotas de suor riscando arabescos em sua testa.
- Permiti, nobre capitão - gaguejou, arredondando os olhos de espanto - que eu possa me vestir com mais apuro! Não seria correto aparecer em trajes tão rudes na presença do nosso incomparável Emir. Voltarei dentro de poucos instantes.
E Mosab, no nervosismo em que se achava, deixou o oficial do Califa na porta e correu para os aposentos internos de sua casa.
- Takla! - gritou ele, já no harém chamando a esposa. - Quero o meu turbante novo e os meus trajes de festa! O rei quer falar comigo!
- Falar contigo? O rei? - duvidou Takla, com desabrimento, receosa de que o marido, envenenado pelas complicações geométricas e astrológicas, tivesse perdido a luz da razão.
- Sim - confirmou Mosab. - Apressa-te, mulher! Vai o Califa receber-me, agora mesmo, em audiência especial. Não é sonho, nem delírio! Um capitão da guarda está à minha espera, na porta. Que será?
- Sim, que será?
A dúvida, numa inquietação sem limites, cintilava nos olhos negros e expressivos de Takla.
E quando Mosab vestia seus trajes mais novos, enfiava a djalaba (4) mais fina e enrolava na cabeça vistoso turbante cor de cinza, tentava adivinhar a razão daquele honroso chamado.
- Quererá o rei colher alguma informação sobre Astrologia? arriscou Mosab, ansioso por ouvir a opinião da esposa.
Takla não aceitava esse palpite. Nada de Astrologia. O ambicioso Abd-el-Melik, filho de Morwã, não olhava para as estrelas do céu, nem acreditava nos adivinhos da Terra. Recebera, certamente, algum documento secreto da Pérsia e queria que Mosab (apontado como verdadeiro Koodjha) traduzisse as letras e revelasse o segredo. Era isso, com certeza, e nada mais, Inch' Allah (5)!
O fato é que Mosab Ali Hosbã, o taleb medinense, sempre capengando, com todas as inquietações da incerteza, foi levado à presença do grande monarca Abd-el-Melik, filho de Morwã, Comendador dos Crentes.
Os nobres muçulmanos que viram o taleb atravessar, com passos arrancados, os amplos e luxuosos salões do palácio, indagavam entre cochichos e sorrisos desdenhosos:
- Que pretenderá o rei ouvir desse astrólogo da perna torta?
A verdade do caso não transpareceu, pois a audiência, por determinação do Califa, foi cercada do maior sigilo. No divã (6) ficaram, apenas, o Emir dos Árabes, o prestigioso Abd-el-Melik, e o taleb Mosab, seu convidado. Todos os secretários, guardas e servos se retiraram.
Depois de convidar o astrólogo a sentar-se a seu lado (pondo democraticamente a mão espalmada sobre o ombro), o rei assim falou, sem preâmbulos, em tom amistoso:
- Tenho recebido de ti, ó taleb, ótimas e fidedignas informações. Latif, minha atual favorita, amiga de tua esposa Takla, falou-me várias vezes, com muito interesse, a teu respeito. E estou resolvido (para agradar à sedutora Latif) a nomear-te para o cargo de grão-vizir (7).
- Grão-vizir? - repetiu Mosab, a alma arrastada por um simum de espanto. - Grão-vizir?
- Exatamente - confirmou o Califa, com absoluta naturalidade, anediando a barba. - Quero que exerças as funções de chefe do meu governo. És um homem pobre, bem sei, mas honesto e trabalhador. Conheces os altos segredos da Geometria de Euclides e da Astrologia; sabes fazer as contas mais complicadas, com os números. Escreves com facilidade e correção. Estou certo de que poderás desenhar, a qualquer momento, a marcha dos sete planetas pelo céu. Informaram-me, também, da tua impecável lealdade. Ninguém põe em dúvida a tua sabedoria naquilo que diz respeito ao Livro de Allah (8). Julgo-te, portanto, perfeitamente capaz de controlar os meus vizires, vigiar as despesas do Tesouro e dirigir a administração do Califado.
Vivia Mosab o momento culminante de sua vida; sentia-se estonteado, quase vertiginoso; batia-lhe descompassadamente o coração; procurava dominar-se e ouvir com o máximo respeito as palavras do rei.
O Califa, reclinando-se sobre as largas almofadas, olhos semicerrados, enclavinhando os dedos, prosseguiu:
- Só poderei, entretanto, lavrar a tua nomeação depois que tiveres respondido a duas perguntas muito sérias que vou formular a teu respeito.
- Aguardo a vossa inquirição, ó Comendador dos Crentes! - acudiu Mosab, com lenta mesura, sinceramente emocionado. - Direi a verdade, quaisquer que sejam as consequências. Iallah (9)!
- Está bem - retorquiu Abd-el-Melik num olhar vago. - Sinto-me confortado com a segurança da tua palavra.  Primeira pergunta (a mais simples talvez) é a seguinte: - " Tens amigos entre os damascenos?"
- Ora, ora, por Allah! - respondeu Mosab com um sorriso de intenso orgulho. - Tenho amigos, e bons amigos, por toda parte. Desde a Mesquita até o Mercado. Entre ricos e pobres, sábio e ignorantes, conto com centenas e centenas de legítimos e verdadeiros amigos! Ainda ontem ao cair da tarde...
- Muito bem - acudiu o rei - interrompendo-o, naqueles rodeios, com bom humor. - As boas amizades formam os alicerces da verdadeira Felicidade. Já ouvi, de um poeta no deserto, esta sentença: "Se os amigos me fugirem, é bem certo, de mim fugirão todos os tesouros". Passemos, agora, à segunda pergunta, que reputo muito grave: "Tens, meu caro taleb, inimigos entre os muçulmanos?"
- Oh! Não! - protestou Mosab, com veemência, esforçando-se por ser claro e decidido. - Desconheço o que seja um desafeto. Inimigos? Creio que nunca os tive. Esforço-me por desfazer as intrigas, os mal-entendidos; não me incomodo com os mexericos, e sou surdo às insinuações malévolas. Tenho, por norma,  esquecer as ofensas e perdoar as injúrias. Assim procedendo, transformo as malquerenças em afeições; os ódios, em indiferenças; as aversões, em estimas. Eis a minha confissão: Não tenho inimigos, ó Rei do Tempo!
- Se é assim - declarou, sem detença, com reprovadora frieza, o Califa - lamento muito, mas não poderás ser nomeado grão-vizir. Seria realmente absurdo que o chefe do meu governo, o primeiro-ministro do Islã, fosse um homem neutro na vida, sem o menor traço de caráter, destituído de qualquer paixão política, sem fibra, sem partido, aviltado pela fraqueza, falho de sentimentos. Todo aquele que possui uma parcela diminuta de personalidade vê logo aparecer, ao seu lado, a sombra tortuosa de um inimigo.
E como o bom é ingênuo taleb, olhos de terra, se mostrasse sucumbido diante daquele inesperado desfecho, o Califa retornou, num gesto largo, indefinido, tornando-se taciturno:
- Observa, ilustre Mosab, o meu caso, por exemplo. Sou o Rei, o sucessor de Morwã, o glorioso (que o Eterno o tenha em sua paz!). Pois bem, tenho inimigos cruéis, impiedosos, dentro e fora das terras árabes! mas vamos adiante: Maomé, o Clarividente Profeta, o Enviado de Deus, teve inimigos rancorosos, muitos dos quais tentaram, por todos os meios e com todas as armas, arruiná-lo, vencê-lo e matá-lo. Mais ainda: Allah, que é Único, Onipotente, Misericordioso, também não está isento de inimigos. Que são os ateus e hereges, senão inimigos irreconciliáveis de Deus?
Não sabia Mosab disfarçar o desapontamento que o esmagava. Se tia-se perdido, aniquilado, naquela tempestade de objeções.
Vendo-o triste e sucumbido, resolveu o rei, num gesto magnânimo, abrir a porta para novas esperanças. E disse-lhe:
- Não desisto, apesar de tudo, da idéia de aproveitar a cooperação de meu caro Mosab, de Medina, e por isso vou fazer, ao ilustre geômetra, especial concessão: Dentro de 24 horas, terás de arranjar, no mínimo, sete inimigos damascenos. Inimigos de verdade. Pessoas desejosas da tua desgraça. Espero-te amanhã, neste mesmo divã, depois da terceira prece. Habilita-te com sete inimigos e volta. Serás nomeado grão-vizir! Palavra de rei!
Ao retornar do palácio de Abd-el-Melik, capengando pelas ruas estreitas e tortuosas de Damasco, sentia-se o bom Mosab confuso, estonteado, como um ébrio. Estivera a dois passos da Glória, da Riqueza, e tudo parecia fugir diante de seus olhos!
Perdia aquela oportunidade rara, raríssima, de ser o grão-vizir de Damasco! E isso por quê? Porque era um homem simples, pacato, inofensivo, sem inimigos!
O Califa exigira dele sete inimigos! Como fazer, em poucas horas, sete inimigos, ele, que em quarenta e cinco anos de vida, pelo Iraque e pela Pérsia, adestrando falcões pelo deserto, formulando horóscopos, não fizera nenhum?
Ao cruzar a rua dos Tecelões, ao lado da loja de Simão Mureb, avistou Mosab um velho aguadeiro, magro, esfarrapado, que puxava pela rédea de um burrinho. O homem repetia com voz somente: "Água! Água fresca! Água da fonte!" Estranho pensamento assaltou o taleb. Para iniciar a conta dos sete (refletiu) vou agredir aquele miserável aguadeiro. Será fácil segurá-lo pelo ganzuz (10); com dois ou três socos atiro-o no chão, espanto o burrinho, derramo a água... Arrependeu-se logo dessa idéia. A agressão seria, além de estúpida, covarde. Que culpa tinha o aguadeiro do fracasso de sua vida?
Mais acertado (prosseguiu Mosab em suas intempestivas reflexões) será procurar o cheique Ismahil Mukbel e fazê-lo sabedor das insinuações malévolas que circulam a respeito de sua primeira mulher Rahif. O honrado Ismahil fará um escândalo. Os irmãos de Rahif ficarão furiosos. E ganharei, com a indiscrição, vários inimigos (quatro, cinco, talvez).
A lembrança da intriga sórdida repugnava-o. O cheique Ismahil era homem bom, cordato; sempre o acolhera com generosa amizade. Grande indignidade seria golpeá-lo daquele modo.
O mais prático (considerou Mosab, seguindo a trilha incerta de seus pensamentos) seria procurar os poetas Nacif, Zogaib e Amin (que se tinham na conta talentosos) e declarar, sem rebuços, em voz alta, na presença de várias pessoas: "Os versos que vocês escrevem são tolices, baboseiras sem nexo, desconchavos sem métrica!" E feita essa crítica (verdadeira, aliás), a conta dos sete inimigos estaria iniciada com três nomes: Nacif, Zogaib, Amin... Ficariam faltando apenas quatro.
Essa extravagância, de criticar poetas, foi logo rejeitada. Mosab sentia-se bem em companhia dos poetas. Não o agradava ferir os homens de pensamento.
E naquele entrechoque de pensamentos, entrou Mosab em sua casa, aturdido, desolado; esbarrava nas paredes; apoiava-se nos móveis como um bebedor de haxixe (11).
Takla, sua esposa, correu ao seu encontro e interpelou-o aflita.
Por Allah! Que havia ocorrido no palácio? Que pretendia o Califa? Por que voltava ele assim abatido, estonteado?
Narrou Mosab tudo o que ocorrera durante a audiência, e fê-la ciente da exigência inominável do Califa: "Ele, Mosab, seria nomeado grão-vizir se arranjasse (até a terceira prece do dia seguinte) sete inimigos, inimigos verdadeiros!
- Mas isto é facílimo - declarou Takla, alçando para ele os grandes olhos pretos. - Nada poderá impedir a tua nomeação. Os inimigos surgirão, às dúzias, pelas ruas, pelas praças, pelas mesquitas...
- Inimigos? - protestou Mosab, com recalcada melancolia, encolhendo tristemente os ombros. - Como arranjar sete inimigos no meio dessa gente simples, hospitaleira, que me acolhe com tanta simpatia?
- Deixa o caso por minha conta tranquilizou-o Takla em tom de meia seriedade, a abanar-se com seu grande leque. - Senta-te ali, naquela almofada, lê duas ou três suratas (12) do Livro, enquanto eu vou providenciar. A exigência do rei será atendida, hoje mesmo, de modo espetacular. Amanhã (queira Allah!) serás o grão-vizir!
Preparou Takla, em dois instantes, o narguilé do marido. Colocou o fumo, trocou a água e avivou a brasa. E, deixando tudo em ordem, afastou-se rápido e, ato contínuo, subiu para o terraço de sua casa. 
Mosab, na inquietação em que se achava, não conseguia ler. As letras do Alcorão dançavam diante de seus olhos. As palavras de Allah confundiam-se em seu pensamento.
Ele, Mosab, o taleb medinense, chegaria ao triunfo supremo do grão-vizir? Caminhando pelas veredas sem fim do pensamento, imaginava-se na corte damascena, ao lado do rei, revestido do manto de honra, recebendo homenagens dos cheiques, dos nobres muçulmanos e dos oficiais. Elevado ao alto cargo de grão-vizir, deixaria aquela casa modesta, úmida e triste e iria viver em suntuoso palácio com pátios floridos e janelas abertas para o jardim: teria mais de vinte servos, escravos e auxiliares. Muitas festas poderia oferecer aos amigos e aos poetas. Festas com jantares e músicas. De quando em quando, uma cantora egípcia, uma dançarina cristã. Sua filha Laila seria pedida em casamento por um nobre, dono de cinco mil tamareiras. Ele, Mosab, o taleb, nomearia os cádis; designaria os funcionários; e, por sua indicação, seriam escolhidos os governadores. Os generais mais arrogantes viveriam a bajulá-lo. Teria, à sua disposição, verbas imensas; as gratificações só seriam pagas com o seu "visto"; o ouro incontável do Tesouro Público rolaria, dia e noite, por suas mãos.
E tudo isso perdido. A miragem desaparecia como se ele (pobre taleb) fosse um beduíno perdido no deserto de Roba-el-Kali! Como engendrar, em poucas horas, sete inimigos?
- Que estás aí a malucar, a falar sozinho - perguntou Takla, reaparecendo, risonha, na porta do harém. - Anima-te, meu marido! Já está tudo providenciado. Amanhã serás nomeado grão-vizir do Califa Abd-el-Melik. Querias sete inimigos? Arranjei-te setecentos, sem sair deste bairro em que moramos!
- Por Allah, ó filha de meu tio! - exclamou Mosab, trêmulo de espanto e com inquietação na voz. - Que loucura foi essa? Ouvi teus passos quando subias para o terraço. Que fizestes aos nossos vizinhos?
- Tranquiliza-te - chalaceou Takla, com a maior fleuma, tendo nos lábios um riso superior. - Nada fiz que pudesse ferir o teu nome, ou macular a tua reputação de taleb. Chamei, apenas, as minhas amigas mais íntimas e disse-lhes a verdade:
"Quero comunicar a todas que meu marido vai ser, amanhã, depois da audiência, nomeado grão-vizir do rei." Todas elas estão bem a par das minhas relações com Latif, a favorita do Califa. Sabem que Latif aprendeu a bordar comigo; os pratos saborosos que Latif prepara foras inventados por mim. Mas, mesmo assim, a surpresa foi geral. A formosa Rihana, esposa do eu amigo Hussein, não quis acreditar. Vi-me obrigada a jurar pelas barbas de Mafoma e pela felicidade de Laila. Oadad, sobrinha de Tufik Jaouad, rosnou furiosa: "O Califa está louco! Como poderá um capenga exercer as funções de grão-vizir?" E sabes qual a observação de Jolikha, filha de Dahe Murad? Disse apenas, com momices na voz: "Não dou sete dias de vida para o governos desse Califa imbecil!"
- E Rahif? - indagou Mosab. - Qual foi a opinião da primeira esposa do cheique Ismail Mukbel?
Takla sorriu novamente. Luzia-lhe nas pupilas um fulgor de intensa satisfação. Respondeu:
- A delicada Rahif, sempre de cabelos bem pintados, fitou-me com ironia e comentou com certo desfastio, fazendo uma careta enjoada: "Meu marido tinha razão. Esse Califa não sabe escolher seus auxiliares."
- Mas tudo isso, minha querida Takla - lamentou Mosab meio embaraçado, com nervosa firmeza - nada significa para os nossos planos. Essas aleivosias assacadas por suas amigas perdem-se ao vento; ficarão sobre a areia da minha indiferença. E a situação para mim continua insolúvel: sem inimigos, impossibilitado de servir ao rei!
- Aí é que estás enganado - acudiu Takla, com certa excitação jubilosa - O teu erro é completo. Essas quatro contarão a novidade a vinte ou trinta; essas vinte ou trinta transmitirão a notícia a mais de cem. De cem o salto será para mil. Todos os maridos serão devidamente informados do caso. Antes que o nurezin chame os fiéis para a prece da noite, mais de cinco mil damascenos estarão a par da escolha do novo grão-vizir. Cada um deles dirá, com surdo rancor; "Fui preterido pelo capenga!" Julgar-se-ão todos roubados, esbulhados, ludibriados. Trezentos invejosos ficarão, esta noite, remoendo as suas cruas decepções. O ódio, inspirado pela inveja, irá aninhar no coração dos ambiciosos. E amanhã, ao soar da terceira prece, terás não sete, mas setecentos inimigos rancorosos em Damasco!
Ao cair da tarde, na hora em que o sol rasava o horizonte, o taleb foi reconduzido ao divã do Califa.
Abd-el-Melik parecia aprazer-se daquela visita; recebeu-o com simpatia e interpelou-o, risonho, com um leve traço de ironia na voz:
- Por Allah, ó taleb! Conseguiste, dentro do prazo, atingir a conta de sete, por mim fixada? Ou continuas com a vida livre das flechas da inimizade?
- Rei dos Árabes! - arriscou timidamente Mosab, inclinando-se respeitosamente. - Minha esposa Takla assegura que devo ter mais de setecentos inimigos nesta opulenta cidade de Damasco.
E o taleb relatou ao rei o estratagema de Takla e o resultado que obtivera reunindo as amigas (e só as mais íntimas) no terraço de sua casa.
- Ouahyat-en-nebi (13)! - exclamou o Califa. - É então verdade que Takla, tua esposa, fez correr pela cidade, como certo, coisa resolvida, a noticia da tua nomeação? Só agora encontro justificativa para estranha atitude de vários vizires e cheiques durante a audiência desta manhã. Muitos deles fizeram, assinaladamente, péssimas referências ao teu nome e revelaram tremendas infâmias a teu respeito. O cheique Tufik Jaouad, que pretende governar o Iraque, chegou a insinuar que meu amigo Mosab tem cúmplices no Egito, com os quais se corresponde em dialeto, revelando segredos de Estado; Hassen Rahmi, o jurista, contou-me que já viu o "taleb capenga, ex-falcoeiro" (a expressão é dele), preparando sortilégios para matar pessoas da família real. Assegurou-me o velho Ismahil Mukbel, em tom de chalaça, que não passas de um astrólogo ignorante e confuso.
Ao ouvir aquelas acusações que sabia serem falsas, infames, caluniosas, disse de mim para comigo: "O taleb Mosab julga-se livre dos inimigos, mas, na realidade, tem mais inimigos em Damasco do que um ladrão de camelos." Mas agora está tudo explicado. Creio estar bem a par do ocorrido. Todos esses rancorosos inimigos foram inspirados pela inveja, e surgiram, de ontem para hoje, graças ao estratagema de Takla.
Ao ouvir aquelas palavras, o bom Mosab rejubilou-se em seu íntimo. Inolvidável lição recebera de sua esposa. A inveja é a grande inspiradora de malquerenças, inimizades e ódios.
O Califa Abd-el-Melik, depois de refletir alguns momentos, declarou, aprumando-se severo e hirto entre as almofadas:
- Amanhã, sem falta, na presença dos cheiques, com todas as honras, tomarás posso do cargo de grão-vizir. Espero, de hoje em diante, conduzir com mais eficiência os negócios públicos, e conto com a tua sábia e judiciosa colaboração.
E rematou, com um olhar malicioso:
- Peço-te apenas uma coisa:
Quando tiveres qualquer dúvida sobre algum problema do Califado, consulte a inteligente e prestimosa Takla. Feliz o marido que pode ser inspirado e esclarecido por uma boa esposa.

______
Notas:
(1) Alcorão: Livro sagrado dos muçulmanos.

(2) Maktub: Estava escrito.

(3) Abd-el-Melik, Ben-Mowar: Filho de Marwar, Califa de Damasco. Um dos soberanos do ramo dos Omeya. Governou desde 685 até 705.

(4) Djalaba: espécie de túnica.

(5) Inch'Allah: Essa exressão deve ser traduzida por "Queira Deus".

(6) Divã ou diva: Salão do palácio real.

(7) Grão-vizir: Primeiro-ministro.

(8) Refere-se ao Alcorão, o livro sagrado.

(9) Iallah: Por Deus! Exaltado seja Deus!

(10) Ganzuz: Raspada a abeça do árabe, fica, no alto, um monticulo de cabelos que é denominado ganzuz.

(11) Haxixe: Entorpecente.

(12) Suratras: São denominados suratras os capítulos do Alcorão, em número de 114.

(13) Ouahyat-en-nebi!: Pela vida do Profeta!

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A Primeira Rupia

Boa tarde pessoal, como falei antes, neste livro que estou lendo, há contos curtos e outros longos. Hoje o conto é longo, bem longo, mas tem uma lição muito importante, vale a pena lê-lo. Ele é originário do Paquistão e seu nome é:




A Primeira Rupia

O homem virtuoso é feliz neste
mundo e é feliz no próximo: é
feliz em ambos. É feliz quando
pensa no bem que fez; sente-se
ainda mais feliz quando envereda
pela estrada do Bem.
(Aforismo budista do "Dhammapada"
ou "Palavra da Doutrina".)


Se queres, meu bom amigo, viajar pelas terras longínquas e misteriosas do Oriente, nada mais simples. Vem comigo. Já escolhi, com cuidado, inspirado na alta sabedoria, o roteiro que mais nos convém. Tudo muito simples e seguro. Escuta. Entraremos pelo Delta do Sindh, (1) cortando as ondas intranquilas de mar de Omã. No fim de quatro dias de fatigante e agitada jornada, vamos encontrar, para além da turbulenta Haiderabad (2) uma cidadezinha pitoresca, risonha, rodeada de espessas e tenebrosas florestas, onde os tigres costumam bramir suas mágoas nas noites calmas de verão.
Essa cidadezinha pitoresca chama-se Sevã. Por favor, nunca venha a esquecer desse nome tão pequenino: Sevã (3). Eis a minha grande idéia: Pararemos exatamente à sombra dos muros da maravilhosa Sevã.
Que vamos admirar em Sevã? perguntarás, certamente. Templos estranhos? Palácios suntuosos com colunas douradas? Ruínas multisseculares enliçadas de legendas seculares?
Nada disso, ó irmão dos árabes (4)! Nada disso! Nem templos gigantescos, nem palácios deslumbrantes, nem ruínas dignas da atenção dos arqueólogos. Entre as ruas estreitas de Sevã, para além do mercado de Tendas Roxas, esbarramos com uma casa escura, meio escalavrada, de teto baixo, sem pintura, bem modesta (uma porta e duas janelas). Ali reside um sábio religioso chamado Raja Ramohã. É homem simples, acolhedor e de boa paz. Dele vamos ouvir uma das histórias mais surpreendentes do Paquistão.
- Uma história? Uma história do Paquistão?
- Sim, meu amigo, uma história.
Não te surpreendas com esta revelação. Observa só. Subimos o Sindh, o rio das águas sagradas; enfrentamos mil e um perigos; fugimos das trações diabólicas de Haiderabad, e assim procedemos com esse fim único e tão prosaico: ouvir uma história! Uma história do Paquistão! Para muita gente sem crença e sem amor à fantasia, tal idéia seria apontada como uma extravagância ou uma loucura. Todos se enganam.Ouvirás com a máxima atenção essa história espantosa e emocionante que será narrada pelo judicioso e eloqüente Raja Yadava Ramohã; e mais tarde, dentro de quinze ou vinte anos, dirás aos teus filhos e aos filhos dos teus filhos se foi útil ou não a nossa estada junto daquelas espessas e tenebrosas florestas "onde os tigres vêm bramir as suas mágoas nas noites calmas de verão".
- E a história?
- Ah! Sim, a história... Já ia me esquecendo da história. Intitula-se: A primeira rupia (5). O douto Raja Yadava Ramohã vai inciar a narrativa. Estejamos atentos. E bem atentos. Encontramo-nos na Ásia, é verdade, nas terras férteis do Paquistão; mas aqui, como em qualquer outro recanto do mundo, sentimo-nos sempre sob o olhar de Deus.
- E a história?
- Vamos ouvi-la, meu bom e prestimoso amigo. Vamos ouvi-la dentro de poucos instantes. Dois predicados exige Deus do homem puro e religioso: Paciência e Resignação!

Longa é a noite para aquele que
está na vigília, na angústia; penosa
é a estrada para o atormentado,
sem esperança; triste é a vida para
o néscio que vive fora da Lei.
(Dhammapada, cap. V)

Sentado num banco tosco, a cabeça baixa, os braços cruzados, o sábio Raja Yadava Ramohã assim começou, numa cadência triste, de remador fatigado:
- Aqui, nesta tranquila Sevã (já lá se vão muitos anos), vivia um velho e honrado mercador, de boa casta, mais conhecido pelo nobilitante apelido de Krivá, isto é, "o homem de uma só palavra".
Samuya, o Krivá, era viúvo e tinha um filho. Esse jovem (figura central desta narrativa) tinha o nome de Chana (6), ou melhor, Chana Samuya.
Imenso, chocante e imenso, era o contraste que se podia observar entre o pai e o filho. O velho Samuya, homem honrado e trabalhador, era pessoa de alto prestígio em Sevã. Todos o respeitavam por sua honradez, sua lealdade inquebrantável e, principalmente, por sua permanente preocupação ilibada de praticar o bem, dentro da vida religiosa. Possuía, enfim, as cinco virtudes (7)!
Mas o jovem Chana, por muitas razões, afastava-se inteiramente do modelos paterno. É bastante triste dizer! Chana Samuya era leviano, vadio e de péssimo comportamento.
Em sua alma enegrecida não cintilava a menor réstia do luar da virtude. Rara era a semana em que ele não agitava Sevã, praticando uma desordem ou uma estripulia qualquer. E com isso, quanto desgosto causava ao coração do bondoso Krivá!
Os chefes de família detestavam o estouvado Chana; as pessoas de bem e de boa casta o evitavam. "Esse jovem, filho do Krivá", diziam os mas sensatos de Savã, "acabará mal. Muito mal, Na prisão, ou na forca. Vejam: já tem dezoito anos e ainda não tomou jeito para as coisas sérias. É preguiçoso, ignorante e desordeiro!"
Sim, tudo era verdade. O moço, leviano e estouvado, arrastava consigo os grilhões de três gravíssimos defeitos: vadio, ignorante e perigoso arruaceiro!
Ora, um dia, ao cair da tarde, um servo foi em busca do desprestimoso Chana, com a missão de tirá-lo, por alguns momentos, da roda alegre em que ele se achava. Seu pai queria falar-lhe. E tratar de assunto de alta e extrema gravidade.
- Vai ver depressa o que o rico Samuya pretende - chalaceou um dos comparsas. - Vê se arrancas, daquele ingênuo velhinho, mil rupias. Os teus amigos estão bem precisados! Que venham os Taktis (8) de ouro!
Surpreendeu-se o jovem com o chamado paterno. Que seria? Largou a guitarra, ajeitou os trajes e foi ter a sua residência. Passou pelo largo portão de ferro, atravessou o pátio e dirigiu-se ao aposento em que se achava seu pai.
O céu acinzentado do Paquistão assinalava a primeira semana de inverno, e a tarde, sob a serenidade do crepúsculo, estava fria, excessivamente fria (9).

O bom é como um jardim florido,
cheio de encanto; o mau é como a
flecha envenenada que sibila no
meio das trevas.
(Dhammapada, cap. VIII)

Deitado no leito, com a cabeça apoiada em largas almofadas de pena, o velho Samuya, o Krivá, meditava. Tudo ali parecia irradiar a tranquilidade acolhedora das coisas que vivem à luz da Bondade. À direita, no fundo do aposento, a lareira estava acesa. O braseiro crepitava. As chamas desenhavam, no ar, retorcidos maches (10) de cor rubra, rápidos, saltitantes, como se o fogo quisesse aquecer o mundo com um imenso cardume esbraseante.
Depois de acolher o jovem com um sorriso triste, o ancião assim começou:
- Meu filho! Quero falar-lhe, pela última vez, das coisas sérias da vida. Atingimos momento de extrema gravidade em nosso rumo pela Terra. Quero informar-te, com paternal sinceridade, da situação. Sinto-me doente, com a saúde profundamente abalada. Não sei se viverei mais de dez ou doze semana neste mundo. A mensagem que eu trazia para a vida já foi entregue ao Destino (11). Tudo fiz, meu filho, a fim de levar-te para o caminho do bem, do trabalho e da virtude; foste sempre surdo aos meus conselhos e admoestações; cego foste também para os nobres exemplos que de mim e de meus amigos recebias a cada passo da vida. Jamais quiseste estudar; detestas o trabalho.Fugia dos bons e procuravas a companhia dos maus, dos cínicos e dos inúteis. Esses péssimos e incorrigíveis companheiros (amigos que em má hora escolheste) perverteram o teu caráter, enegreceram a tua alma. Que és hoje, afinal? Um vadio, um inútil, um tipo detestado e desprezível. E agora sinto que vou deixar neste mundo, para desdouro do meu nome, para desonra de meus antepassados, um filho que todos apontam como uma nódoa da sociedade.
Neste ponto, o enfermo fez uma pausa, olhou para as chamas vivas da lareira e logo prosseguiu com serena melancolia.
- Bem sabes, meu filho, que sou dono de imensas riquezas, e esse patrimônio representa cinquenta e muitos anos de honrado trabalho e cansaço. Tenho vários prédios em Karachi (12); imensos campos de cultura na província de Khaipur (13); três boas lojas de comércio em Haiderabad; vinte e um barcos da minha empresa percorrem o Sindh, no serviço de transportes de arroz; são minhas todas as terras ricas e férteis que rodeiam Munchur (14); conto, ainda, com um estabelecimento bancário, muito próspero, em Cingapura. Pela tua situação de filho único, és o herdeiro de todos os meus bens, de todas as minhas propriedades. Que aconteceria, porém, se toda essa riqueza (terras, casas, navios...) caíssem em tuas mãos? Seria dilapidada em festas e orgias degradantes. E no entanto, com o patrimônio que possuo, poderias viver tranquila e folgadamente até o último dia da tua vida.
Nova pausa. O Krivá, olhou para o filho, que o ouvia de pé, em silêncio. Correu, a seguir, os olhos pela lareira, cujas chamas crepitavam. Depois de passar a mão pela testa, o ancião retomou a palavra:
- Convencido estou de que seria uma injustiça e também um mal irreparável colocar a menor parcela de riqueza em tuas mãos denegridas pelo vício. Deliberei, por isso, deserdar-te.
E assim, logo que eu fechar os olhos para a vida, ficarás na miséria. Sem meia ana (15) para o pão. Sem meia ana para a roupa ou para o teto. Terás que trabalhar como uma sura (16) ou mendigar farrapos pelas aldeias. Escavar pedras nas minas, entre os forçados, ou vegetar nos pátios dos templos. Vida de sofrimento; vida de expiação. Quero, entretanto, oferecer-te uma última oportunidade. Oportunidade única, ditada pelo meu coração de pai: Dentro de três dias, a partir de amanhã, dentro de três dias, repito, terás de ganhar uma rupia com o teu trabalho. Presta bem atenção: Ganhar uma rupia com o teu trabalho. Se fizeres isso, dentro do prazo, serás por mim declarado e nomeado herdeiro de todos os meus bens e ficarás rico, prodigiosamente rico. Poderás viver, regaladamente, até a extrema velhice. Caso contrário, serás deserdado e atirado, como já disse, sem remissão, na lama de indigência. Espero que não percas essa oportunidade. Vai!

Não sigas a lei do mal; não vivas na
ociosidade. A felicidade do homem
está na Verdade e não na Mentira.
(Dhammapada, cap. XIII)

Aquela decisão do pai impressionou profundamente o jovem Chana. A possibilidade de ser deserdado e atirado à miséria tinha que ser admitida dentro da pura realidade.
"A situação é realmente grave", pensou. "Meu pai é pelo povo apelidado o Krivá - o homem de ma só palavra. O que ele diz, faz!"
E concluiu, pensativo: "Vou tratar de ganhar uma rupia com meu trabalho."
Voltou o jovem para a companhia dos seus indignos amigos. Um deles o interpelou:
- Que pretendia de ti o velho Samuya?
Para que ocultar a verdade? Contou Chana a resolução ameaçadora de seu pai, mencionando a condição que ele deveria levar a termo, dentro de três dias, para fugir à pobreza, à miséria: ganhar uma rupia com seu trabalho!
- Uma rupia! chasqueou Soalf (17), um dos vadios presentes. - Ora que idéia mais tola! Tu, meu caro Chana, poderás resolver facilmente o problema e atender ao capricho infantil de teu pai. Tenho uma saída muito fácil para teu caso!
- Qual é, Soalf, a tua sugestão? - perguntou Chana
- Muito simples - explicou Soalf, aqui tens uma rupia. Empresto-ta. Quando receberes a herança pagar-me-ás dez! E amanhã, ao cair da tarde, irás ao aposento de teu pai, e a ele, ao crédulo Samuya, entregarás esta rupia, dizendo, muito sério: "Aqui está, meu pai, a rupia que ganhei com o meu trabalho!" O velho não terás motivo para duvidar da tua palavra e terás ganho o desafio! A herança dos Samuyas será tua. Que achas?
Concordou Chana com a sugestão do amigo Soalf e aceitou a rupia emprestada. Mais tarde pagaria dez.

O néscio que despreza a Lei e
segue uma doutrina falsa prepara
sua própria destruição.
(Dhammapada, XII)

No dia seguinte, ao cair da tarde, entrou Chana no aposento de seu pai.
- Sua benção, meu pai! - proferiu com voz pausada.
- Que Deus te abençoe, meu filho - respondeu o velho.
- Aqui está, meu pai, a rupia que ganhei, hoje, com o meu trabalho!
E Chana, com o maior descaramento, entregou ao ancião a rupia que,na véspera, havia recebido do indigno Soalf.
O ancião tomou nas mãos a moeda que recebera do jovem e pôs-se em silêncio, a virá-la e revirá-la entre os dedos. Olhava para uma face e depois punha-se, muito atento, a olhar para o anverso. Balanceava, de leve, a mão, como se quisesse sentir o peso da moeda.
A tarde estava fria, muito fria. No fundo da sala a lareira estava acesa; o fogo crepitava. As chamas erguiam bem alto os seus volteios avermelhados.
O judicioso Krivá olhou para o filho, para a moeda e, depois, para o fogo. O rapaz esperava de pé, imóvel, aguardando a decisão paterna. O fogo dava estalidos e atirava para o ar fagulhas que rebrilhavam.
- Meu filho - exclamou de súbito o velho, como se tivesse recebido uma inspiração do céu. - Meu filho! Esta rupia não foi ganha com o seu trabalho!
E, tendo proferido tais palavras, ergueu a mão e, num gesto rápido, seguro, atirou a moeda ao fogo.
Esmagado pela verdade, Chana não reclamou, não protestou. Abaixou a cabeça e retirou-se humilhado.

A vida é fácil de viver para um
homem que não tem vergonha.
(Dhammapada, cap. XVIII)

À noite retornou o desajuizado Chana à companhia dos seus péssimos amigos.
- Então, indagou Soalf, em tom faceto - conseguiste enganar o teu pai? Venceste a tal aposta logo no primeiro dia?
Relatou Chana o fracasso e a vergonha que sentiu ao ouvir a verdade cortante: "Este rupia não foi ganha com o teu trabalho." E lá fora, para o fogo, a rupia de Soalf. O plano fracassara.
- Isso tinha que acontecer - remoqueou logo Onicic (18) outro vadio e desbriado do grupo. - Era fatal! Eu já previra.
E como Chana o fitasse muito surpreendido, o desonesto Onicic ajuntou, a cara ulcerada de vícios, trejeitando um sorriso sarcástico:
- Vais à presença de teu pai, depois de um dia de trabalho, repara bem! Um dia de trabalho, fresquinho e leve como uma criança que sai do berço. É claro que teu pai havia logo de perceber a mentira. E o velho fez mal em jogar a rupia ao fogo. Devia atirar a rupia em tua cara, para ensinar-te a ser inteligente e prático.
E, tirando da bolsa uma rupia, entregou-a a Chana, dizendo em tom cínico, com um petulante ar de inteligência:
- Aqui está o meu empréstimo. E a tua vitória, na competição imposta por teu pai, será certa, certíssima. Mas não procederás estouvadamente como fizeste hoje. O meu plano é outro e não poderá falhar. Ouve bem. Amanhã, ao cair da tarde, quando bem próxima for a hora de terminar o dia, darás duas ou três corridas pelas margens do Sindh até o bazar dos pescadores, duas ou três vezes rolarás no chão, sobre a lama, junto à ponte; quando estiveres assim, bem sujo de terra, fatigado entrarás no aposento de teu pai. E dirás, como um homem exausto, que trabalhou, sem parar, o dia inteiro, que trabalhou de verdade: "Aqui está, meu pai, a rupia que ganhei com o meu trabalho!" Ao notar a terra em tua roupa, até rasgões em tua blusa, e ao perceber o cansaço em tua voz, teu pai aceitará a rupia, aquela rupia ganha com o teu trabalho. Mas não te esqueças: Logo que receberes a belíssima herança terás de me pagar cem! Dez pelo empréstimo tão oportuno; noventa pelo sábio e acertadíssimo conselho que acabo de te dar.
Aceitou Chana a rupia de Onicic e achou que aquela idéia, um tanto extravagante, de simular trabalho, dando corridas pelo cais e trambolhões pelas ruas, era acertada. Uma cartada infalível!

Aquele que diz  que não é
verdade vai para o Inferno;
também aquele que não tendo
feito uma coisa afirma tê-la feito.
(Dhammapada, cap. XVII)

No dia seguinte, o segundo do prazo, ao cair da tarde, depois de ter passado o dia na indolência e na vadiagem, o jovem Chana achou que era chegada a hora de correr pela rua das Tendas Roxas. A simulação devia ser perfeita. Os pescadores, que retornavam do trabalho com suas redes e estacionavam pela rua, olhavam espantados para aquele rapaz (o filho do Krivá), que parecia alucinado. Havia adoecido, com certeza. Duas ou três vezes atirou-se ao chão e rolou pela terra, sujando-se, como um chacal, na lama negra.
Terminada a vergonhosa mistificação, dirigiu-se o jovem para o aposento de seu pai. A tarde desenha no céu do Paquistão uma tela de indescritível beleza. Um frio cortante, afiado nas ondas do mar de Omã, varria as ruas e infiltrava-se pelas frestas.
O ancião, como sempre, achava-se recostado em seu leito. Ao fundo do grande aposento, a lareira estava acesa; o fogo vivo desenhava arabescos estranhos.
Chana entrou, As vestes sujas e em desalinho; lama nas mãos e terra no rosto. E disse, a voz perturbada pela respiração, opressa e ofegante:
- Sua bênção, meu pai!
- Que o Eterno te abençoe, meu filho!
- Aqui está, meu pai... - declarou Chana, entregando a moeda na ponta dos dedos - aqui... está... - o seu peito arfava de cansaço - aqui está a rupia... a ru... pia que eu gan... gan... ganhei - a fadiga o forçava a gaguejar - com... com o meu trabalho...
O velho Samuya, exatamente como fizera na véspera, recebeu a moeda do filho e pôs-se a examiná-la calma e tranquilamente. Observou atento uma das faces; virou-a entre os dedos e procurou apreciá-la pelo outro lado. Sopesava a moeda, balançando levemente a mão para cima e para baixo.
A tarde estava fria, como sabem ser frias as tardes de Sevã. No fundo da sala (já disse e repito ainda) a lareira estava acesa e o fogo era intenso; as chamas punham reflexos vermelhos pelas paredes e pelo chão. O rapaz, de olhos baixos, a roupa suja, a respiração cansada e sibilante, aguardava, em silêncio, a sentença do paterna.
O Krivá olhou para o filho, para a moeda e para o fogo. Teria percebido a mistificação torpe que aquela rupia representava?
- Meu filho! - exclamou serenamente o ancião, numa decisão inabalável, severa e rude - Meu filho! Esta rupia não foi ganha com o teu trabalho!
E depois de ter proferido tais palavras (como fizera na véspera), num gesto rápido e seguro, atirou a moeda para o meio das chamas.
Era aquela decisão do Krivá. Chana não protestou, não reclamou. Abaixou a cabeça e retirou-se humilhado. Com a mistificação ignóbil, ditada pelo seu indigno companheiro, não conseguira ludibriar seu pai. A segunda rupia da mentira, seguindo o mesmo caminho da primeira, fora para o fogo, levando o peso da sua infâmia.
Que fazer? Já lá se fora o segundo dia do prazo. Restava um dia, um dia apenas. E o velho Samuya era o Krivá, "o homem de uma só palavra". O jovem, ao regressar, sentiu os passos frios da miséria a pisar-lhe na sombra.

Agradável é a virtude que vai até
a velhice; agradável é a fé que tem
raízes profundas.
(Dhammapada, cap. XXIII)

A rua estava escura. Desolado pelo fracasso do segundo dia, perdida a segunda rupia, profundamente triste e aterrado, dirigia-se o jovem Samuya à Praça dos Tintureiros (ponto preferido para a reunião dos vadios e desocupados), quando ouviu que alguém  chamava pelo nome:
- Chana! Olá, Chana! Aonde vais?
Chana parou. Um vulto destacou-se da sombra e dele se acercou. O jovem logo o reconheceu. Era o prudente Gaimo (19), velho amigo de seu pai. Fora seu professor das primeiras letras alguns anos antes e Chana tinha certo respeito e amizade pelo antigo Mestre. Entre as pessoas honradas de Sevã, o velho Gaimo, homem de reto caráter, era o único a cumprimentá-lo com simpatia e a sorrir para ele com bondade.
- Vou até a praça - respondeu, cabisbaixo, pesaroso - Pretendo conversar com meus amigos. Quero distrair-me um pouco. Sinto-me aflito, preocupado.
- Aflito? Preocupado? - indagou o velho Gaimo - Que aconteceu contigo?
Resolveu Chana contar ao seu ex-professor tudo o que ocorrera (já no coração lhe doíam remorsos).
Narrou a grave exigência de seu pai e, a seguir, as duas tentativas fracassadas. A primeira, sugerida por Soalf, e a segunda, a burla miserável, inspirada por Onicic,
E concluiu, infletindo a cabeça para o peito e deixando caírem os braços, num desalento:
- Nada mais me resta. Estou perdido. Sinto-me desde já condenado à miséria!
- E quem te disse isso? protestou o judicioso Gaimo, pousando a mão no ombro de seu discípulo. - Não considero o teu caso perdido. Ao contrário. Julgo-te salvo. Asseguro que estás a salvo. Cometeste, a meu ver, dois erros graves, imperdoáveis. Mentiste para o teu pai. E mentiste duas vezes. Mentir para o pai é uma infâmia , uma torpeza. Para o pai não se mente. Não se mente de forma alguma. Foste, é claro, mal aconselhado. Pérfidos amigos levaram-te a praticar a baixeza de mentir, quando devias, diante de teu pai, falar a verdade. Escuta, meu caro Chana, de acordo com o prazo fixado por teu pai, o Krivá, resta ainda um dia. Larga os teus indignos amigos e pensa na tua vida, em teu futuro e em teu pai. Trabalharás amanhã, trabalharás como um homem de bem; ganharás a tua rupia e serás digno do teu nome. Ficarás, assim, reabilitado para a vida. Volta, meu amigo; volta para a tua casa. Precisas repousar bem esta noite, para que amanhã, cheio de ânimo, possas ganhar tua rupia. Será, afirmo pelo nome do Eterno, a primeira rupia ganha honestamente com o teu trabalho!
E, depois de abraçar, carinhoso, o seu antigo discípulo, afastou-se, desaparecendo na escuridão da rua.

A dádiva da Lei excede todas as
dádivas; a doçura da Lei excede
todas as doçuras; o prazer da Lei
excede todos os prazeres.
(Dhammapada, cap. XI)

No dia seguinte, ao romper da manhã, Chana ergueu-se do leito, vestiu-se rapidamente e  saiu.
Precisava começar bem cedo.
"Antes do meio-dia", pensou, "já terei ganho uma rupia com meu trabalho".
Pretendia Chana afastar-se da cidade. "Não quero encontrar conhecidos", refletiu. "Vou para campos de Kotri".
Ao caminhar pela estrada avistou vários homens que se preparavam para o serviço da colheita de juta. Alguns decruavam a terra;lidavam outros no replantio. Chana apresentou-se ao chefe, ofereceu-se para o serviço e foi aceito. Viu-se forçado a entrar num terreno pantanoso; em alguns lugares a água chegava-lhe até a cintura. Trabalhou ativamente durante mais de duas horas, A seu lado, alguns homens, delindo suas angústias, trabalhavam cantando; mantinham-se outros em silêncio, soturnos e tristes.
Em dado momento, o capataz, de semblante carregado, acercou-se dele e perguntou:
- Olha rapaz, o apanhador que estavas substituindo acaba de chegar.Não precisamos mais dos teus serviços.
E atirou-lhe, em tom seco, despedida irrevogável:
- Tens pouca prática e necessitamos de homens bem ativos, experimentados.
E deu-lhe, como pagamento, quatro anas.
Recebeu-as Chana na palma da mão. Olhou as quatro moedinhas e refletiu pesaroso, desolado:
Que poderei fazer com essas quatro anas? Preciso é de uma rupia!
Estava nosso herói meditando sobre o caso, decidido a arranjar novo trabalho, quando avistou um oleiro gordo, de cara risonha, que girava uma roda para amassar barro. Chana ofereceu-se na mesma hora para o trabalho, e o oleiro aceitou.
- Vira a roda, meu amigo! - disse, alegre, o oleiro - Preciso preparar, dentro de três dias, dois milheiros de tijolos!
Trabalhou Chana algum tempo, mas antes da hora da meia sombra (20) o oleiro de cara redonda resolveu parar a tal roda e pagou, pelo serviço feito, quatro anas.
"Quatro mais quatro, oito! Oito anas!", pensou Chana. "Já ganhei oto anas! Meia rupia! Preciso, porém, ganhar uma rupia inteira. Uma rupia com o meu trabalho!"

Segue a lei da virtude; não sigas
a do pecado. Os Virtuosos
descansam na bem-aventurança
neste mundo e no outro.
(Dhammapada, cap. XIII)

Deixando o serviço do oleiro, resolveu Chana caminhar pela estrada em busca de novas tarefas; em dado momento, avistou um homem de tez ruiva, mal-ajambrado, que vinha ao seu encontro, trazendo no ombro um molho de ervas.
O homem da tez ruiva o reconheceu:
- Não és, por acaso, Chana, o filho do velho e honrado Krivá?
- Sim - confessou o jovem. - Sou o filho do honrado Krivá.
- Queres ficar com estas ervas aromáticas? São de Pundjab. No mercado podem dar bom preço. Vendo-as todas por meia rupia. Serve-te o negócio? Preciso voltar para casa, pois tenho um filho doente e minha esposa foi ontem a Karachi visitar os parentes.
- Aceito - respondeu Chana. - Compro-te as ervas por meia rupia.
E entregou ao homem as oito anas que havia recebido do oleiro e do plantador de juta.
De posse das ervas dirigiu-se Chana para o mercado. Colocou-se junto à entrada principal e, com a maior naturalidade, começou a apregoar sua mercadoria preciosa:
- Quem compra ervas aromáticas? Coisa finíssima! Sem igual nesta terra! Quem compra ervas aromáticas?
Os homens que passavam mostravam-se às vezes interessados. Olhavam, sorriam para Chana e seguiam para diante. Mas, afinal, quem pretenderia comprar ervas aromáticas quando, em casa, faltava o azeite para o lume, ou o pão para a arca?
Mas Chana, decidido a vender, a ganhar a sua rupia, não esmorecia, não desanimava:
- Quem compra as deliciosas ervas aromáticas? Ervas aromáticas de Pundjab! Quem compra? Quem compra?
Ao longo da estrada, batida pelo vento, a soalheira abrasava. (21)
Pequeninas borboletas de asas amarelas voavam sem destino.
Um homem alto, com turbante de seda, ao dar com olhos no jovem, parou e insinuou em voz baixa para um amigo que estava a seu lado:
- Ou muito me engano, ou este rapaz das ervas aromáticas é o filho do rico Samuya, o Krivá. Surpreende-me vê-lo aqui, trabalhando no comércio, entre os mercadores da feira. Sempre me pareceu um vadio, um inútil. O velho e bondoso Samuya deve se sentir feliz ao saber que o filho mudou de vida.
Chana continuava incansável, a proclamar as virtudes incomparáveis de suas ervas:
- Quem deseja ervas finas e aromáticas? São de essência duradoura! Alta preciosidade para o lar! Quem compra ervas aromáticas?
Passou, afinal, uma mulher de rosto velado, ricamente trajada, seguida de duas escravas indianas. Trazia na testa um belo diadema de Bahawalpur (22). O seu vistoso manto de seda, caindo em pregas largas, chegava até o chão. Ao caminhar, o frêmito de suas saias chamava a atenção. Era uma opulenta muçulmana, que deixava, todas as manhãs, o harém de seu esposo e corria ao mercado, em busca de rendas, perfumes e colares finos.
Ao ver o jovem Chana, com seu molho de ervas, a muçulmana do diadema parou e perguntou-lhe com ar meio provocante:
- Quanto queres, ó jovem saide (23) pelas ervas?
Com sorriso amável, respondeu Chana:
_ Senhora, em outra situação, eu lhe daria todo o molho em troca de simpatia e nada mais! Hoje, entretanto, sou forçado a vender. Preciso de uma rupia e nada mais!
- Uma rupia! - protestou com a sobranceria impertinente a desconhecida - Por Allah! Uma rupia por um molho de ervas? Isso é um delírio, meu jovem! Nem que fosse incenso fino de Hojai (24). Ali, no outro extremo da feira, os homens de Batakundi oferecem ervas de cheiro a três anas cada molho.
E cortava as palavras com frouxos de riso. O sarcasmo brilhava em seu olhos.
- Mas, senhora... - balbuciou Chana - ... preciso de uma rupia.
- Ora, ora... resmungou a muçulmana, olhando-o de alto - Que importa a mim se precisas de uma, cinco ou vinte rupias? As ervas de cheiro aparecem, agora, entre os traficantes do Sul, por preço muito baixo. És, pelo que vejo, meu caro saide, novo aqui. Não conheces bem o comércio e nem sabes as coisas como andam. As rupias são raras e difíceis. Desejo ajudar-te. Pago-te doze anas pelo teu molho seco e mesquinho. Aceitas minha proposta?
Chana refletiu apreensivo. Se as ervas (que ele havia comprado, na estrada, por meia rupia) nada valiam, o mais certo seria vendê-las pela primeira oferta, aquele "molho seco e mesquinho". E sem mais hesitar, aceitou as doze anas da exuberante muçulmana do rosto velado e entregou-lhe todo o apanhado de ervas.
A dama espalhafatosa do diadema de ouro afastou-se, levando as ervas aromáticas. Um hindu magro, de rosto pálido, de estatura acima da mediana, que tudo ouvira em discreta observação, puxou o jovem Chana pelo braço e disse-lhe com um risinho importante:
- Fizeste mal negócio, meu amigo. Péssimo negócio. Essa islamita gorda, com diadema na testa, enganou-te. Viu em ti um novato e resolveu explorar-te. Não quis intervir na venda para não parecer importuno. As tuas ervas do Pundjab podiam ser vendidas, ainda hoje mesmo, por duas ou três rupias. Não aqui, mas no suque dos perfumistas, onde os árabes dão bom preço pelas raízes e plantas aromáticas. Sei que és novo no ofício; toma, pois, cuidado. E muito cuidado. Quem deseja trabalhar no comércio, precisa estudar, detidamente, os preços das mercadorias; pesar, com atenção, os desejos e caprichos dos compradores; consultar o interesse predominante do momento; informar-se da produção e das mil outra coisas que fazem variar as cotações, descer ou subir os preços.
Agradeceu Chana os conselhos e advertências do hindu, contou, com cuidado, as doze anas, uma a uma, e preparou-se para deixar o mercado. Precisava ganhar mais quatro anas e completar uma rupia. Uma rupia ganha com  seu trabalho!
- Vou procurar um trabalho fora daqui. O comércio, com suas confusões de preços, com seus múltiplos problemas, não me interessa.

Ensina; ensina sempre, e estarás
aprendendo também.
(Dhammapada, cap. III)

Já bem alto ia o sol quando Chana enveredou pela estrada, tomando o caminho da aldeia de Korti, onde esperava ganhar, com seu trabalho, o que faltava para as dezesseis anas.
Sob uma grande figueira, na curva do caminho, avistou um homem de barba branca, a face lanhada de rugas, que se achava sentado numa pedra, tendo na mão uma folha cheia de caracteres estranhos.
Chana saudou o ancião e perguntou-lhe, num tom receoso, se precisava de alguma coisa.
- Sim - resmungou o velho - estou à espera de alguém que me ensine a ler esta carta escrita por meu filho.
- Não seja esta a dúvida - respondeu Chana - posso muito bem ajudá-lo. Sei ler qualquer escrito. 
E o jovem leu a carta, traçada em caracteres árabes, traduzindo-a, palavra por palavra. Um ou outro termo de urdu (26) exigia esclarecimento. Chana elucidou o velho sobre todos os pontos obscuros. O ancião alegrou-se com as notícias (que eram boas), pois o filho ausente avisava-o de que breve regressaria de Karachi, a nobre Karachi, onde se achava trabalhando com seu tio havia cinco anos. "As suas preocupações vão terminar (dizia a carta), pois dentro de duas semanas estarei ao teu lado".
Pela tarefa de ter lido a carta, Chana recebeu do velho uma ana, três bolos de manteiga e um pedaço de pão de centeio, bolos e pão que ele saboreou com muito apetite, pois já se sentia alquebrado pela fome.

Aquele que antes era leviano e
sem cuidados e que se torna calmo
e judicioso ilumina este mundo tal
como a luz do sol libre das nuvens.
(Dhammapada, cap. XI)

Chana juntou na mão o dinheiro ganho e contou outra vez as moedinhas:
- Treze anas! Pouco falta para uma rupia! Preciso trabalhar ainda!
Nesse momento avistou um burriqueiro, cara de malaio, caminhava lentamente pela estrada puxando o seu burrinho pela rédea. Aferrenhado pela jornada, o burriqueiro gritava e praguejava:
- Vamos! Pelas barbas do Profeta (26)! Não sei o que tem este animal, que não quer andar!
Chana olhou com a maior atenção para o burrinho.
- Espere, amigo! - disse, dirigindo-se ao burriqueiro - Parece-me que o teu burrinho está ferido. Tem algo na pata.
- Na pata? - estranhou o homem, interrompendo a caminhada.
- Sim, na pata. Um espinho, creio...
O jovem abaixou-se, tomou uma das patas do burrinho e, rápido, arrancou o espinho que ali se achava encravado. Lavou, depois, a ferida e amarrou um pedaço de pano. Sem aquele cuidado, o animal estaria inutilizado para o serviço.
Encantado ficou o burriqueiro com o auxilio de Chana e deu-lhe, a título de pagamento pelo tratamento do burrinho, uma insignificante moedinha, uma ana.
O jovem agradeceu ao bom velhinho e contou, ou melhor, recontou, com ansioso interesse, o dinheiro que até então havia ganho com o seu trabalho:
- Quatorze anas!
Faltavam, apenas, duas anas para completar a rupia ganha com o seu trabalho.
Na curva da estrada, já perto da aldeia do Kortis, avistou Chana, junto ao rio, à sombra de velhos tamarindeiros, um grupo numeroso de viajantes. Vinha de longe uma toada de passos e vozes.
Indagou de um árabe que passava, com largo turbante amarelo, todo engrilado.
- São peregrinos muçulmanos - respondeu o informante - Vão assistir, para além do rio, às festas do aniversário do Profeta. Os remadores são poucos e, por isso, a travessia está sendo demorada.
- E o encarregado do transporte precisa de remadores? indagou Chana.
- De certeza que sim - acudiu logo o árabe do turbante amarelo. - Se queres ganhar dinheiro, é só remares.
Chana não perdeu tempo. Correu aflito para junto do embarcadouro. Procurou, sem mais delongas, o encarregado do transporte dos peregrinos e ofereceu-se como remador:
- Aceito - declarou o encarregado - mas, como sabes, meu jovem, por viagem de ida e volta só pago ao remador meia ana! É o preço! Nem mais um grão de trigo.
Meia ana por duas viagens? Chana refletiu. O sol estava a meia altura no céu. Ele (para completar a rupia) deveria fazer quatro viagens completas!
Tenho tempo, pensou, martelado pela preocupação que o dominava. Vou ganhar, no trabalho do remo, as duas anas que me faltam.
Escolheu um dos barcos, tomou um par de remos e pôs-se a transportar os peregrinos muçulmanos.
Rema que rema, braquejou Chana, sem parar, a tarde toda.
No fim de oito travessias, já cansado, com as mãos feridas, recebia Chana, do seu empregador temporário, o pagamento das duas anas prometidas (nem mais um grão de trigo).
Chana, esfalfado, com as mãos trêmulas, contou as moedas recebidas:
- Dezesseis anas! Uma rupia!
Havia ganho, ana por ana, uma rupia com o seu trabalho.
Sentia-se orgulhoso, consigo mesmo. Uma alegria infinita transbordava-lhe o coração, afervorado, naquela hora, pela grande e radical mudança em sua vida.
Pesava-lhe no corpo a extrema fadiga; faminto, sedento, as mãos feridas, as vestes sujas; mas Chana sentia-se intensamente alegre, radiante. O seu desejo era cantar, gritar. Gritar pelos campos, pelas ruas, no meio do rio entre os veleiros, para que todos ouvissem. Ouvissem aquela espantosa verdade:
- Ganhei uma rupia com o meu trabalho! Vejam! Aqui está! Uma rupia ganha com o meu trabalho!

Não tenhas por amigos os que
praticam ações más; não faças
amigos entre as pessoas de
sentimentos baixos. Procura fazer
amigos entre os virtuosos. Que os
teus amigos sejam homens de bem.
(Dhammapada, cap. VI)

E Chana, passos largos, vencendo a estrada, de regresso para sua casa, refletia:
- Trabalhei de verdade, e sem parar, o dia inteiro. Vejamos: Trabalhei na agricultura, colhendo juta nos pântanos; trabalhei no comércio, vendendo (no meio e muita confusão) ervas aromáticas na feira; trabalhei como professor, ensinando o velho analfabeto a ler uma carta; trabalhei como veterinário, curando o pobre burro que seguia ferido pela estrada; trabalhei, finalmente, no serviço de transportes, conduzindo peregrinos muçulmanos para outra margem do rio. Aos principais ramos da atividade humana dei, hoje, o meu quinhão de esforço e de trabalho. Meu pai vai sentir-se orgulhoso de mim! Deixei a vida inútil, deplorável, e ingressei na legião dos homens que trabalham, dos homens que produzem, dos homens dignos, que são úteis à sociedade.
E, recalcando a imensa fadiga, caminhava bastante apressado, pois o sol, reluzindo entre as nuvens cor-de-rosa, tomava sobre o horizonte; e o jovem, ao aproximar-se de Sevã, repetia, com intenso júbilo, seguindo a trilha de seu devaneio:
- Meu pai vai sentir-se orgulhoso de mim!
E apertava, cauteloso, na mão ferida e dolorida, as dezesseis anas escuras, azinhavradas, que tão penosamente havia ganho no trabalho.
Já bem perto de sua casa, ao atravessar a Praça dos Tintureiros, avistou dois de seus antigos companheiros. Eram dois velhacos e trampolineiros do grupo, irmãos de Soalf. Chana não os cumprimentou.
- Não posso ter relações de amizade com gente dessa espécie! - refletiu. - São tipos vadios, mentirosos, inúteis! É raça que não presta! Sou, agora, homem de bem, de caráter, homem do trabalho!

Livra-te do mal; segue o caminho
da virtude; pratica a justiça e
serás glorificado.
(Dhammapada, cap. VIII)

Já ia o disco avermelhado do sol tocando de leve a curva imensa do horizonte e feria a Terra com suas últimas flechas de luz, quando Chana entrou, de passo firme e cabeça erguida, no aposento em que se achava seu pai.
- Sua bênção, meu pai! - disse ao chegar.
- Que o Eterno te abençoe, meu filho - respondeu o ancião.
Depositou Chana as dezesseis anas na mão de seu pai e declarou, com voz pausada e cheia de emoção:
- Aqui está, meu pai, a rupia que ganhei, hoje, com o meu trabalho!
A tarde estava fria. A lareira, como sempre, estava acesa e o fogo crepitava. As chamas voluteavam no ar.
O velho Samuya tomou nas mãos as dezesseis anas e ficou, alguns instantes, em silêncio, observando as pequeninas moedas. Contou-as e recontou-as. Sim, ali estava uma rupia!
O rapaz, os braços cruzados, trêmulo de frio, aguardava a decisão paterna. Estava tão emocionado, tão comovido, que as lágrimas corriam-lhe pelas faces. Chana chorava; mas chorava de alegria, chorava como um homem, pela grande vitória alcançada. Batia-lhe descompassadamente o coração.
O ancião, em silêncio, pôs-se a olhar para o filho; observou-o com meticuloso cuidado, da cabeça aos pés. O jovem tinha as mãos feridas, a roupa suja e em desalinho. Havia até sangue em sua blusa. Parecia pálido e abatido. Observou, de novo as dezesseis anas empilhadas em sua mão; e, finalmente, olhou para a lareira. As chamas crepitavam.
Decorridos alguns instantes, o ancião tomou entre os dedos as moedinhas, ergueu a mão e, num gesto rápido, atirou as dezesseis anas ao fogo, proclamando, na extrema decisão, com voz grave:
- Meu filho, esta rupia não foi ganha com o seu trabalho!
- Meu pai! - bradou o rapaz, num protesto incontido.
- Ah! Meu filho! Então foi. Sim, foi ganha com o teu trabalho. O teu protesto, sincero e expressivo, é a prova veemente! Das outras vezes, quando atirei a moeda ao fogo, nada disseste. Mas desta vez protestaste. E por quê? É que hoje, meu filho, recebeste a grande e sábia lição da vida! O dinheiro ganho com o trabalho não deve ser atirado, como palha sem valor, ao fogo do desperdício.
E depois de breve pausa, o nobre Krivá prosseguiu, com ênfase:
- Só o trabalho honrado nobilita o homem. Pelo trabalho, unicamente pelo trabalho, pode o homem servir; servir à família, servir aos amigos, servir à sociedade. Aquele que não trabalha, não serve. Trabalhar é servir. Servir é trabalhar. Uma vez que és um homem do trabalho, não tenho dúvida em deixar toda a minha fortuna em tuas mãos. A riqueza por mim acumulada, entregue a um homem de bem, de caráter firme, será uma fonte de incalculáveis benefícios para a coletividade e para a Pátria! E rematou, comovido:
- Chana! És o meu filho bem amado! Tenho orgulho de ti! Ganhaste, hoje, para toda vida, a primeira rupia com o teu trabalho!

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Nota:
(1) Sindh: Refere-se ao Indo (ou Indu), um dos rios mais notáveis da Ásia Meridional. Está entre os rios sagrados do Oriente. Nasce no planalto tibetano, atravessa os desfiladeiros do Himalaia e fertiliza as planícies de Pundjab. Recebe, pela margem esquerda, o Pandjnab (Cinco Rios) e atira-se, por um delta de várias bocas, no mar de Omã.

(2) Haiderabad: Cidade importante na Índia, capital de um Estado de mesmo nome. Não é banhada pelo Indo, mas pelo Musi, afluente do Indo. O palácio El-Char-Minar significa "Quatro Minaretes". Em Haiderabad, a vida noturna é muito intensa.

(3) Sevã ou Sewã: Cidade do Paquistão Ocidental, à margem direita do Indo. Larga produção de arroz e juta.

(4) Irmão dos árabes: Tratamento carinhoso. Significa: amigo leal, bom companheiro; pessoa que estimamos e cuja companhia nos agrada. Não esquecer que no Paquistão, 80% da população são muçulmanos.

(5) Rupia (leia-se rupía, com acento no i): Moeda do Paquistão. Divide-se em dezesseis anas. Cada ana é dividida em quatro partes chamadas pices.

(6) Chana: Com este nome surge na história do budismo uma figura de alto relevo. O discípulo predileto de Buda chamava-se Chana. E Chana manteve-se fiel ao Mestre até os últimos momentos. Símbolo de fidelidade inquebrantável.

(7) Cinco virtudes: Caráter firme; sabedoria; bondade; amor ao trabalho; espírito de justiça.

(8) Taktis: Peças raras. Discos valiosos.

(9) Apresenta o Paquistão Ocidental três estações bem definidas: o inverno, o verão e a estação das chuvas. Em alguns lugares, o inverno é extremamente rigoroso, porém, em geral, seco.

(10) Maches: variedade de peixe. Tem a forma alongada.

(11) Destino: Na crença hinduísta, cada pessoa tem, na vida, certa missão a cumprir, isto é, traz uma mensagem que deve ser entregue ao Destino.

(12) Karachi: Porto de mar.

(13) Khaipur: Um dos Estados que formam o Paquistão Ocidental.

(14) Munchur: Região dos lagos.

(15) Ana: Correspondente a um dezesseis avos da rupia. Dois pices.

(16) Sudra: Indivíduo de casta inferior.

(17) Soalf: Anagrama da palavra falso.

(18) Onicic: Anagrama de cínico

(19) Gaimo: Anagrama da palavra amigo.

(20) Meia sombra: Onze horas, mais ou menos.

(21) Nessa época, no Paquistão, os dias são quentes e as tardes e as noites muito frias.

(22) Bahawalpur: Província do Paquistão, famosa por suas indústrias de jóias e adereços.

(23) Saide: Chefe. No caso é empregado em sentido irônico, de gracejo. Saide é vocábulo árabe.

(24) Hojai: Variedade rara de incenso, que os árabes muio apreciam.

(25) Urdu: É o idioma nacional do Paquistão.

(26) Expressão muçulmana. Refere-se a Maomé.